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A Poética de Ana Cristina César


Batista de Lima


Após 500 páginas de percurso e um número maior de indagações, rastreei a obra completa de Ana Cristina César para tentar prospectar razões comuns entre vida e obra. Li seus poemas, seus textos em prosa, os trabalhos de estudiosos sobre sua obra e não me satisfiz. Essa impossibilidade de entendê-la na poesia com relação às atitudes pessoais também não ficam explicitadas pelos ensaístas que lhe estudaram.

Viviana Bosi detecta uma certa pressa dessa escritora, cuja escrita sinaliza e profetiza um efêmero a se consumar. Heloísa Buarque de Holanda fala de um confinamento impresso no seu verso. Silviano Santiago, seu mais lúcido analista, tenta vincular o texto à persona, mergulha, mas o fôlego se torna rarefeito a certa altura.

A escrita de Ana Cristina se volta contra a precariedade do que é permanente, e mesmo tratando do que é trivial há sempre algo a ser revelado em suspense. Numa atitude inversa ao comum, seu texto é um sintoma mascarando uma estrutura profunda em que se aloja o real.

É uma luta entre o poema e a poesia, entre o texto e a autora, entre o leitor e Ana C. Não é fácil desvendar um rumo do seu dizer se a metáfora está na superfície sempre a encobrir o real metonímico subterrâneo. Sua análise tem que ter um direcionamento de dentro para fora, e essa fórmula não é a tradicional para vasculhar mensagens. Ou seja, sua leitura da vida vem na contramão do leitor.

Combativa, combalida, combatida e abatida. Poderia ser assim qualificada cada fase de sua curta vida de 31 anos. Afinal, nascida em 1952, no Rio de Janeiro, viveu os movimentos rebeldes da política e das artes que marcaram os anos da década de 1970.

De origem na classe média carioca, cursou Letras, com mestrado feito na Inglaterra. Destacou-se logo como escritora e tradutora, tendo seu foco principal de atuação, a poesia. Fez uma poesia liberta de rótulos, pois não aceitava alguns modismos ainda vigentes como o Estruturalismo e o New Criticism.

Sempre foi independente e atuante, dona de seu destino, a ponto de, numa atitude byroniana, por vontade própria, produzir na prática seu último e fatal poema.

Em 1979 publicou seu primeiro livro de poemas, "Cenas de abril". Nesse livro, com um viés lírico, ela revela tiradas inusitadas como: "Estou bonita que é um desperdício", ou "enjoo me dá o açúcar do desejo". E depois de estudos de Teoria Literária nos seus cursos formais na universidade, e ter que se submeter aos purismos da linguagem acadêmica, ela desabafa: "antigamente eu sabia escrever".

Também em 1979 ela publicou outro livro de poemas que foi "Correspondência completa". Nesse livro, ela põe ambiguidades numa linguagem cheia de armadilhas que põe o leitor em um desvendamento trabalhoso. Já dá, no entanto, para vislumbrar intertextualidades de Murilo Mendes e toques líricos de Manuel Bandeira, os dois poetas brasileiros mais do seu gosto. Ela gostava de Clarice Lispector. Suas leituras dessa também enigmática escritora transparecem mais na sua prosa, nos seus contos.

Por isso seus analistas arranham o nervo do seu corpo textual mas não o expõem. Talvez uma análise mais psicanalítica de todo o conjunto vida/obra fosse mais profundamente ao seu entendimento.

Quando lançou "Luvas de pelica", em 1980, não se preocupou em definir o gênero. Se é conto ou diário, não importa. Sua linguagem porosa leva o leitor a segui-la como se atravessasse um campo minado, ou um terreno de focos de areia movediça. Nesse livro ela se direciona para uma subjetividade conflituosa. "Estou muito compenetrada no meu pânico".

Com um misto de prosa e poesia, ela apareceu em 1982 em "A teus pés". Nesse livro ela fala de "um marinheiro na ponta escura de um cais" e de "bocas 'imperguntáveis'". Não se satisfaz com a poesia e se esconde em muitos momentos por trás dos esconderijos que a prosa possibilita.

Sem dar muito crédito às convenções e aos afetos Ana C. Revela: "há um amor / que entra de férias". Depois culmina em desabafo: "Estas são as faces da minha fúria". É nesse livro em que mais aparecem as influências das suas leituras, dos seus amores literários. Aqui apontam Walt Whitman, Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), Allen Ginsberg e Murilo Mendes.

É o momento em que sua literatura vem com o ritmo do jazz e do blues, e o desencanto é a tônica de seus desabafos.

A partir de então, seus livros são póstumos. E o culto à sua personalidade é tão forte que muitos escritos vieram à tona, como comprovação de que Ana C. Deixou bastante material inédito. Logo em 1985, Armando Freitas Filho, seu grande amigo, com a colaboração dos pais de Ana, Waldo César e Maria Luísa César, organizou uma coletânea de textos a que deu o título de "Inéditos e dispersos", publicada pela Editora Brasiliense.

O livro apresenta uma trajetória da autora que vai dos seus desenhos do início da vida escolar, passando pelos primeiros poemas, ainda na adolescência, até chegar a textos finais de sua curta existência. É um livro documental e nostálgico.

O grande livro de Ana Cristina César é essa sua "Poética", da Companhia das Letras, lançado em 2013. São 503 páginas em que aparecem sua obra conhecida até então e muito material inédito. Acredita-se que todo o seu espólio esteja compilado nesse livro.

Sua leitura amplia o mito em que se tornou essa escritora. Depois de despontar como um turbilhão no meio intelectual carioca, alastrou-se pelo Brasil afora como símbolo de uma geração que viveu encruzilhadas, que sentiu a mutilação dos sonhos. Mesmo assim se lançou além do horizonte. Por lá, uns encontraram oásis, outros enfrentaram abismos.


FONTE: Diário do Nordeste - 15/07/14.


 

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