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A Porangaba de Galeno

Batista de Lima


Além do conhecimento dos costumes indígenas, é notável a curiosidade de Juvenal Galeno no devassar da linguagem dos tabajaras. São tantos os termos que ele utiliza, da língua indígena, que ele organizou um breve glossário, um "Vocabulário Americano".

O romantismo europeu recuou à Idade Média para pescar seu herói entre os cavaleiros daqueles tempos. No Brasil, por nos faltar essa fonte de bem nascidos, foi preciso recorrer ao indígena, que viveu aquela época nesta nossa Pindorama. Depois de tanto massacrarmos os nativos, donos destas terras, durante trezentos anos de colônia, nós os transformávamos em heróis. Alencar e Gonçalves Dias são dois exemplos desse fenômeno na primeira fase romântica. O primeiro, no romance; o segundo, na poesia, ambos de origem nordestina. Outro nordestino que não pode ser esquecido é Juvenal Galeno.

Juvenal Galeno, o mais conhecido poeta romântico cearense, é tido como iniciador do romantismo ente nós com seu livro de poemas Prelúdios poéticos, de 1856. Apesar de Gonçalves Dias não se mostrar muito entusiasmado com sua poética, quando aqui esteve na Comissão Científica, em 1859, não impediu que Galeno, em 1872, saísse com um poema épico, baseado em lenda conhecida dos nativos. Era Porangaba, poema elaborado sobre um enredo que lembra bastante a saga de lracema, de José de Alencar. O incrível é que o ritmo do poema lembra a mesma batida que Gonçalves Dias utilizava nas suas épicas contadas em torno dos índios Timbiras. Mas o importante é que a tragédia da índia Porangaba deu origem ao nome da lagoa que lhe assistiu a desventura de seu amor romântico.

Há no entanto diferenças entre as abordagens do poeta e do romancista cearenses. Em Alencar,o herói Martim volta à corte, levando consigo o primeiro retirante cearense, o filho da dor, Moacir. No caso de Porangaba, o herói português, o emboaba, é morto em luta com o índio traído, no caso, Pirauhá. Também Porangaba é sacrificada em nome de uma ética indígena, quando em lracema, a morte da heroína é muito mais em nome de uma ética colonizadora. A segunda diferença está no gênero. Enquanto Alencar suspendeu a elaboração versificada de sua saga, transformando-a em prosa, Galeno sustentou o estro e atravessou toda a epopeia dentro de uma versificação bem elaborada.

Porangaba, no entanto, aparecido após lracema, e geograficamente reduzido à província que a contextualizou, não teve o aparato midiático de que se revestiu a índia tabajara imortalizada por um escritor já famoso e situado no melhor mercado consumidor da época, o Rio de Janeiro.

Publicado pela primeira vez em março de 1872, no mensário Lira Cearense, esse poema indianista que teve uma segunda edição em 1991, através da Casa Juvenal Galeno e da Stylus Comunicações, vem agora na sua terceira edição, graças à iniciativa da Secretaria de Cultura em reeditar clássicos de nossa literatura. Pode-se dizer que Porangaba é um clássico da literatura cearense, da antropologia e da linguística. Da mesma forma que lracema, Porangaba pertencia à nação Tabajara e pela descrição das duas, difícil é imaginar qual a mais bela. O destino de cada uma, a morte. A morte romântica em nome da "ousadia" de um amor impossível mas grandioso, mesmo diante da ética nativa que considerava o adultério como passivo de condenação.

Além do conhecimento desses costumes indígenas, é notável a curiosidade de Juvenal Galeno no devassar da linguagem dos tabajaras. São tantos os termos que ele utiliza, da língua indígena, que no final do poema ele organizou breve glossário desses termos, a que chamou de "Vocabulário Americano". Ali aparecem termos já de um certo conhecimento por parte do público, como "cunhã", tipóia" e "pajé", ao lado de outros desconhecidos, como" ibak", " junduhí" e "upiara". Esse glossário facilita o entendimento da saga, por parte do leitor e coloca o livro ao alcance, inclusive, do entendimento estudantil, caso o professor pretenda utilizá-lo como livro paradidático.

Essa possibilidade didática é fundamental porque possibilita ao estudante o conhecimento da nossa formação cultural. Depois, o conhecimento da origem dos nossos topônimos. A antiga Arronches tornou-se Parangaba e essa homenagem à lendária índia precisa chegar ao conhecimento do aluno que tem acesso ao mundo inteiro e desconhece o seu quintal. Desconhece, inclusive, os costumes e tradições indígenas, algumas tendo chegado até nossos dias. A hospitalidade dos nossos antigos nativos ainda respinga na atualidade. Era tão bem recebido o forasteiro que o anfitrião lhe oferecia a sua filha para com ele dormir. Dessa dormida foi que surgiu a paixão de Porangaba pelo emboaba.

Interessante é que se a virgindade não era tão valorizada pelos índios, por outro lado, o adultério era punido com a morte. Porangaba dormiu com o português porque era solteira. Mas o português continuou por três anos procurando ouro no interior e Porangaba à sua espera. Nesse interregno destaca-se em lutas de defesa da tribo o guerreiro Pirauhá que recebe como prêmio, o direito de casar com Porangaba, a mais bela índia da tribo. Não sabia ele que a índia já dedicara sua paixão ao lusitano. É tanto que no retorno do branco, mesmo casada, Porangaba se entrega a seu amor e é descoberta pelo marido.

O final trágico é inevitável. Depois de renhida luta, o tacape do índio vence o punhal lusitano. O emboaba morto, a ira da tribo se volta contra a índia que é morta a flechadas. O desfecho romântico imortaliza a índia, que dá nome à lagoa, que serviu de cenário à saga. Daí veio o bairro Parangaba, veio Porangabussu e veio, principalmente, o poema épico de Juvenal Galeno. O que Galeno conseguiu foi imortalizar a índia como coirmã de lracema. As duas índias são tão parecidas, suas histórias são tão próximas, que se pensa tratar-se da mesma heroína. Tão fortes e marcantes que viramos terra de lracema, lagoa de Parangaba.

Pode até não corresponder ao real, possivelmente acontecido, mas o poema é revelador. Nossa cultura possui um subsolo mítico ainda não tão bem devassado. É preciso escavar melhor o nosso passado, ir além do que nos mostrou Alencar e Juvenal Galeno. Afinal há muito mais ingredientes a serem revelados da nossa formação cultural. E um dos caminhos é começar pelo pouco que conhecemos, revelado. É através desse conhecimento que nos entusiasmamos para o mergulho nesse manancial de saberes que é nossa primitiva história.


jbatista@unifor.br

05/10/10.

 

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