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A permanência de Dom Quixote

Batista de Lima


A conclusão da leitura de "Dom Quixote de la Mancha", após 625 páginas de aventuras e ilustrações de Salvador Dalí, levou-me a aceitar a afirmativa de Mario Vargas Llosa de que esse livro de Cervantes é a fonte de onde "provém o romance moderno". Logo após essa leitura, ingressei no mundo fantástico de Gabriel García Márquez para me encontrar com o Coronel Aureliano Buendía, diante do pelotão de fuzilamento, após promover 32 revoluções armadas e perder todas. A Macondo, de "Cem anos de solidão", é uma povoação de onde florescem sonhos como se um novo herói de la Mancha ali viesse a ser gerado séculos depois. São muitas semelhanças oníricas.

Além disso, Dulcineia e Úrsula são mulheres resignadas, vivendo a reboque de sonhos enlouquecidos de seus maridos, às vezes até vítimas do abandono material e familiar mas que em nenhum momento concebem a possibilidade de adultério. A honradez margeia a existência dessas personagens. É tanto que a célebre carta que Dom Quixote remete a Dulcineia del Toboso, através de Sancho Pança, é tida como a mais perfeita carta de amor da literatura castelhana. Mesmo assim não satisfaz totalmente ao leitor diante da ausência de Dom Quixote, de seu lar, e da preservação da honra por parte de Dulcineia.

É, pois, curioso que um personagem visionário, forjado num mundo conservador e arcaico de 1605, seja ainda hoje padrão para se explicar o grande drama humano oriundo do choque da racionalidade com a subjetividade. Isso porque o livro não tem sentido se nos fixarmos apenas na figura quixotesca.

Dom Quixote e Sancho Pança precisam se imbricar no universo do leitor como um só personagem. Nesse personagem duelam permanentemente Apolo e Dionisius, sonho e realidade. Várias dicotomias se estabelecem para instaurar o perfil barroco de um homem dividido, a transportar dentro de si a guerra pessoal que vitima a criatura humana de todos os tempos.

A razão da desrazão de Quixote é atacar os livros de cavalaria e mostrar por fim que o grande prejuízo da morte, paradoxalmente, não recai sobre a racionalidade mais sim sobre a destruição do sonho. Sancho Pança, símbolo da racionalidade, sobrevive a um final onde sucumbe Dom Quixote, representante do sonho.

A narrativa é então suspensa porque um não sobrevive sem o outro. Isso demonstra que os dois são uma só pessoa. A fala que se instaura do choque entre os dois personagens comprova que tudo é produto de uma tensão que margeia a personalidade de uma mesma pessoa.

Dois em um é como se pode pensar Sancho Pança e Dom Quixote. A razão e a emoção podem habitar uma só pessoa. Na primeira descrição de Quixote há indícios de racionalidade: "compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça".

Entretanto, uma das razões de sua loucura parte exatamente do seu vício de ler livros de cavalarias. Eram "livros, tanto de encantamentos como de pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis". Daí que "enfrascou-se tanto em sua leitura, que se lhe iam as noites lendo de uma assentada, e os dias de sol a sol; e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que acabou por perder o juízo".

Dulcineia del Toboso é a musa. Tão bem urdida na narrativa que o leitor tende a se acostumar com sua real existência. Uma espécie de Penélope, da "Odisseia", com feições de Beatriz, da "Divina Comédia". Quando o sonho termina no final da narrativa ainda fica uma dúvida no leitor da real existência de Dulcineia, "princesa Dulcineia, senhora deste cativo coração".

Dulcineia é sedentária, é a espera para o nômade Quixote. Mais parece, a heroína, com Sancho Pança, que almeja também se fixar como governador da ínsula prometida pelo amo. É tanto que depois da frustração do seu governo ele volta para sua casa. Sancho sempre tende a um retorno, Quixote avança. Essa dicotomia barroca pode se instalar numa mesma pessoa. Cervantes, como narrador, escreveu sua saga de guerreiro itinerante, nômade e sedentário, sua vida é um somatório de Sancho Pança com Dom Quixote.

Cervantes demonstra grandes conhecimentos de várias artes e ciências, acumula saberes até de encantamentos. A sua narrativa vez por outra descamba para citações de encantamentos, como a tradição da Grã-Bretanha que afirma não ter o rei Artur falecido e que o mesmo apenas se transformou em corvo e que um dia vai desencantar e cobrar o cetro. Também entende de alvíssaras e "donaires" como é praxe dos cavaleiros andantes. Cavaleiro cavalheiro encanta as donzelas mas as respeita e as defende valentemente quando necessário.

Por fim, pode-se verificar que tão significativo é o "Dom Quixote de la Mancha" que veio a influenciar os melhores escritores ocidentais mais recentes. Daí que consideramos fundamental a leitura desse romance padrão da modernidade. Gabriel Garcia Marquez, Guimarães Rosa e muitos outros escritores famosos demonstram intertextualidades oriundas do "Dom Quixote...". A loucura sublime, o personagem picaresco, a dualidade que fundamenta o grande drama barroco que desembocaria na modernidade estão tão fortes nessa obra, que nenhum leitor saiu ou sairá incólume de sua leitura.


jbatista@unifor.br

28/12/10.

 

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