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A Pastoral Poética de Francisco Carvalho II

Batista de Lima


É a partir do livro "Pastoral dos dias maduros" que o arcabouço mítico da escritura de Francisco Carvalho se define. É nesse momento de amadurecimento pleno que seu estilo alcança o patamar definitivo. E podem-se então delinear características permanentes em sua obra como: "as precariedades da vida e das coisas vivamente presentes diante da morte", como afirma Caio Porfírio Carneiro. Ao flagrar esse efêmero, ele o eterniza através de uma epifania humanizadora. De um objeto aparentemente simples como um pote, ele consegue uma iluminação, uma transfiguração, e o pote passa a ser um ente sensável e sensível.

Essa transfiguração opera o milagre de, iluminado o ser, poderem-se ver dele dimensões invisíveis. Daí que o poeta em certa oportunidade, falando de sua amada poesia, chega a pregar: "A medida da poesia é a totalidade do ser". Essa busca da totalidade alcança sua culminância em "Pastoral dos dias maduros" (1977). Nesse livro, Adriano Espínola rastreia as características que permeiam a obra inteira do poeta: "a memória da terra (…) o cultivo dos mortos (…) a noite (…) a sensualidade latente". Há noite na superfície de um mar de subjetividades poéticas onde através do mergulho da prospecção pode-se resgatar a noturnidade literária permanente de Carvalho.

Mesmo com certa sisudez com que se apresenta em toda a sua obra, há em Francisco Carvalho um humor que vez por outra vem à tona em forma de ironia. Exemplo: "Mulheres são animais lindos / (…) / cavalgam nossos sonhos / e nossos desatinos. / Esvaziam nossos bolsos / e enchem a casa de meninos". Esses momentos álacres não tiram no entanto o compromisso do poeta com a condição humana dos povos oprimidos da América. No livro "Crônica das raízes", esses momentos se encontram e convivem com harmonia e grandeza. O apelo social, quando transparece, não contamina negativamente outras características. Foi essa grandeza poética que fez o júri nacional do Prêmio Nestlé de Literatura atribuir-lhe em 1982, entre sete mil candidatos, o primeiro lugar ao livro Quadrante Solar.

Voltando ainda a Pastoral dos Dias Maduros, é com surpresa que constatamos a não inclusão entre os poemas selecionados para essa seleta, seu primoroso "O rio da minha aldeia" (A modo de Alberto Caeiro), metapoema que merece figurar em qualquer antologia de Francisco Carvalho. As intertextualidades presentes nesse poema fazem com que o Tejo pessoano seja descontextualizado e destronado de sua significação inicial. À proporção que o poema pessoano é desconstruído, Carvalho vai utilizando os materiais para soerguer a estrutura do seu poema.

Outro senão dessa antologia de Francisco Carvalho responde pelo fato de não terem sido contemplados os poemas dos seus três primeiros livros: Cristal da memória, 1955, Dimensão das coisas, 1966, e Memorial de Orfeu, 1969. Sabe-se de um certo desamor do poeta pelo seu primeiro livro, o qual nem figura na Bibliografia do autor. Acontece que o leitor fica privado de ter uma visão global de sua obra e de se deparar com preciosidades omitidas dessa coletânea, como o soneto "O casarão", de Memorial de Orfeu: Onde "Rugas feudais espreitam nos alpendres/ o inverno prometido que não veio./ Um vento esguio nos cristais ressoa./ Erram nos quartos vultos de alfazema/ E um cheiro milenar de palha e seio".

A presença desses versos comprova a necessidade de incluí-los em qualquer coletânea de poemas do poeta. A ancestralidade transborda dos versos. Os cheiros da memória sinestesicamente afloram e aguçam os sentidos do leitor, principalmente daqueles que tiveram origem rural. Ao se analisar essa antologia de Francisco Carvalho, corre-se o risco de falar do que não está na antologia: "Cristal da memória", "Canção Atrás da Esfinge", "Dimensão das coisas", "Memorial de Orfeu". Na Bibliografia do autor, esse dois últimos livros, mesmo não sendo contemplados na coletânea, são pelo menos citados. Os dois primeiros, no entanto, nem figuram como produção literária do autor. O leitor fica como que compungido diante do ostracismo a que são colocados esses dois rebentos do poeta.

Não fosse a mão estirada do crítico Teoberto Landim, esse primogênito e seu irmão segundo se afogariam nas águas do esquecimento. E não precisa se fazer exame de DNA para se constatar que neles circula o mesmo plasma que pereniza o restante da sua produção. O citado crítico chega a falar claramente da condição bastarda a que esses dois livros são conduzidos ao afirmar: "Francisco Carvalho confessa que não gostaria que seus dois primeiros livros fossem levados em conta no cômputo geral de sua produção poética, pois os considera como simples experiências de um período de transição do seu aprendizado literário". Méritos para Teoberto Landim, que foi estudar a obra do autor nos seus alicerces, na sua gênese. E aí constata-se que os caracteres contatados pelo crítico coincidem com os que nos detêm nas obras recentes: o indefinível como dissolução do real, o céu da dimensão das coisas, a fragmentação do mundo a serviço do encantamento.

Esse retorno aos primeiros tempos do escritor nos liga a sua terra, a uma busca do seu cordão umbilical que ficou enterrado no município de Russas, nos idos de 1927, no vale do Rio Jaguaribe, "artéria por onde se esvai o sangue do Ceará", no dizer de Demócrito Rocha. Feitos os estudos iniciais no Ateneu São Bernardo, de Russas, Carvalho veio aportar na Capital do Estado onde sentou poeira, após se abancar como funcionário da Universidade Federal do Ceará, útero onde germinou o CLÃ, o grupo literário mais duradouro e mais fructífero da Literatura Cearense. Ermitão da poesia, sempre achou que "poetas e escritores, de um modo geral, não passam de narcisos que se contemplam pateticamente no espelho trincado da própria subjetividade". Após 39 anos de clausura funcional em um dos departamentos da Universidade Federal do Ceará aposentaram-no. E ele se vingou tentando aposentar a poesia em si próprio ao escrever que: "com esta edição de poemas escolhidos, que não são necessariamente os melhores, pretende encerrar sua obscura carreira literária de poeta assumidamente municipal".

Essa tentativa de se ludibriar e de escamotear uma relação íntima com a poesia não convence o leitor atento. Primeiro porque o poema nunca deixa de ser escrito. Cada leitor novo que aparecer pegará da pena de Carvalho e continuará essa escritura interminável. Mesmo que esse filho de Russas pregue que seus poemas são menores e que todos morrerão consigo, não será morte com enterro final. Cada leitor disputará a alça desse esquife em busca de um sepultamento que nunca ocorrerá. Daí que a tentativa de epitáfio que se concentra permanentemente em sua obra cai no desuso devido às Verdes Léguas e às botas de sete léguas de que cada leitor se reveste na jornada.

Francisco Carvalho é o poeta da repetição. Repete para ecoar. Cada metáfora repetida é um degrau construído na ligação com o leitor. Essa escada de Jacó em busca de um quinto império poético é interminável e desmente o autor, afinal seus versos não são inúteis como não foi inútil o sacrifício de D. Sebastião.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 24/04/12.


 

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