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A olaria do Braúna

Batista de Lima




Há um ano estamos aceirando essa caieira poética do Dércio, mas há mais faíscas dos seus dizeres que tijolos incandescentes alcançáveis. Passar por esse fogaréu é chamuscar-se perigosamente.

Finalmente, "como cavalos fatigados abrindo um mar" de chamas, estamos aqui à terceira margem. Quase escapados estamos nós, eu e minhas circunstâncias, em busca de um tino para decifrar seu tratado poético. Logo na capa, um sujeito de costas, sentado em tosco banco, doa seu dorso nu ao sacrifício de ser espetado por galhos secos da sinistra à destra. Logo nas primeiras páginas, a imagem invertida aparece com o sujeito prostrado, reverenciando a margem, limite entre terra e água.

Acontece que Dércio Braúna se constrói poeticamente entre o espanto e a cólera, numa "criminosa negação da crueza". Ele deve saber que cada criatura tem seu espólio de falas, mas que sua herança maior está no poder das palavras que afia. Por isso que ele faz questão de decifrar coisas que são fiadas por dentro. Sabe ele que mergulhar uma água de cima para baixo é algo trivial, mas para a sua poesia é preciso chegar à estrutura de superfície em um movimento que surja da estrutura profunda, numa evolução de dentro para fora. Sua metáfora está na casca. O real está oculto ou ocultado, esperando a voragem criativa do poeta para a celebração do decifrar. Daí não ser fácil acompanhar seus passos por esses caminhos inversos.

Vez por outra, esse poeta inventor apela para a ancestralidade e nela pede lições de como encabrestar o tempo na sua corrida sem freio. Por isso monta nos costados do Cronos e esporeia-o não como forma de acelerá-lo, mas para miná-lo de sustança como fez Zeus com seu genitor.

Assim, opera-se uma renhida luta do poeta contra o tempo, tendo, como arena de batalha, a enigmática página branca, palco em que muitos vates de outras eras conseguiram salvação. Nessa sua Terra Santa, campo de batalha e afirmação, ele se arma de imbatível couraça verbal em que fúria e força se dão as mãos na confluência dos signos. Não há tempo que resista ao talento. Assim o poeta vai se salvando na estridência do verso.

Essa estridência do verso é resultado do alfabeto com que ele dialoga com a dor. Na sua olaria, os materiais são propícios à combustão. Ali, fogo e ar se comprazem em afagos. Ao final de tudo, é que as palavras se sujam do poeta e o leitor o tem como áspero peregrino do tempo. Por isso que ele escreve como forma de sobrevivência. Principalmente, ele escreve para suportar-se, para encarar a maré cheia, escalando um rio seco, ou para parar de gritar diante de uma parede sem porta. Esse poeta não fala de suas raízes porque é exilado dos afagos do húmus. Por isso ele cria seu espojador nas cercanias do cosmos, lá onde os caminhos procuram curvas.

É difícil a leitura dos poemas de Dércio Braúna. São versos cortantes que nos fazem sangrar. Depois ele salga nossa carnadura tricotada, porque a dele é uma só cicatriz exposta. Ler seus poemas é atravessar um rio infestado de piranhas esfomeadas. Difícil sair ileso na outra margem. Muitos que tentaram esse percurso sucumbiram à importância de resistir à dor. Não aconselho aos frágeis essa travessia do Rubicão. É preciso couraça, escudo e lança para romper essas tiranas léguas desalbergadas. O importante, entretanto, é tentar em nome do sonho, de preferência na noite trevada. Afinal, quanto mais treda a noite, mais o sonho faísca iluminador. É fechar os olhos para ver melhor, como primeiro mandamento.

Esse livro de Dércio, marcado pelo estigma cabalístico do sete, traz propositalmente dez blocos de sete poemas e um bloco com três. Assim são setenta e três poemas que se iniciam com uma proposta de "criar um mundo para saber se há deus". Depois avisa ao leitor que "um homem é toda a humanidade". Da mesma forma assevera que "uma palavra é toda a linguagem". Defende assim que o homem é um ser linguístico. Uma nação portanto é uma construção linguística. É a língua que traça nossas fronteiras. O poema é feito da rebeldia que rompe toda essa predestinação. E isso o poeta faz muito bem. Sua poesia é sem fronteiras. Sua pátria é o sonho, o mal comportado porvir.

Esse mau comportamento faz do poeta um desbravador dos mistérios das coisas. Nada se salva à sua passagem. Por isso que ele chegou a descobrir que "dentro de todas as coisas / há fragmentos de palavras / restos de uma antiga semeadura". O problema ocorre quando ele se procura em si próprio: "sou o que em mim / não pode ser". Não vislumbra em si a melodia epifânica dos néscios. Ele é cético, cruel de pessimismo consigo. "Quase tudo em mim é obra alheia; / sou em mim a estrangeiria de me ser / aos pedaços". Nessa marcha pelo caos poético chega a um momento em que anuncia "Sete poemas apócrifos", colocando títulos em cada um deles e começando essa parte com uma alusão a Octávio Paz: "Toda fronteira é mais verbal que física".

Esse Braúna também se preocupa com sua terceira pele. Vai da casa da poesia, o poema, à casa de moradia onde o repouso que instala não precisa de régua e compasso de arquiteto. "A casa é 30% tijolo e 70% sonho". É uma casa bachelardiana que além de mortal, sonha promessas de memória. Nessa casa não importa a horizontalidade, ela se instala muito além do sótão e muito mais abaixo do porão. É uma casa marcada pela verticalidade, e nela se instalam os mais originais dos seus sonhos, mesmo que o tempo tente transformá-los em pesadelos. Essa luta entre a objetividade do tempo e a subjetividade onírica é que fazem de Dércio Braúna um poeta que para abrir o mar não precisa de cavalos fatigados. FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/02/2018.

 

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