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  • Foto do escritorBatista de Lima

A maturidade limaverde

Batista de Lima


A dor amadurece a pessoa. Por mais madura que seja a criatura, a dor a eleva a um patamar ainda mais alto. Para mitigá-la, o luto. Entretanto, luto que não termina, vira melancolia. Acontece que várias são as fórmulas de se vencer um luto. A catarse literária é uma delas. A poesia é uma fala por onde, aos poucos, a dor pode se esvair. A arte literária é terapêutica. A arte-terapia já virou até disciplina dos cursos de Psicologia. Portanto é um alento, colocar-se no papel, a dor que curcia. Disso tem certeza quem lê "Eternas lanternas do tempo", de Regine Limaverde.

A partir da capa, esse livro do selo Corsário valoriza as sombras. Tudo é sombrio, em verdadeiro esmaecer de imagens. A autora, que ao longo de seus livros anteriores, tem se caracterizado por imagens de sensualidade e sedução, desta feita, vem transfigurando sofrimento no contato de perdas inevitáveis. No prefácio, a professora Aíla Sampaio já se reporta a um desamparo que emerge dos poemas numa "celebração de perdas" como "lamento pela precariedade da vida". Há um dilaceramento transfigurado em metáforas enlutadas.

O grande amor de Regine foi habitar outra dimensão. Nessas horas, medos novos nos habitam por mais maduros que sejamos. Um desamparo emerge de nossos abismos como se ali estivessem de espreita para fustigar a pele. Nesses momentos a vida precisa ser reinventada nem que seja de forma simbólica. A poesia é um terreno onde se pode plantar essa simbologia que tenta dar sentido ao existir. O lirismo, que antes pode ter se apresentado primaveril com seus desabrochares, pode vir agora esgarçado em imagens de verão quando a seca calcina paisagens.

Regine Limaverde, no entanto, está mais para a água que para a seca. Possui doutorado na USP e é professora do Departamento de Engenharia de Pesca da Universidade Federal do Ceará, sendo pesquisadora do Instituto de Ciências do Mar. Já com quinze livros publicados na área literária, tem conseguido conquistar prêmios literários importantes como o Prêmio Estado do Ceará, o Prêmio Osmundo Pontes e o Prêmio do Concurso Nacional de Contos da Paraíba. Por conta dessa produção literária é que se tornou membro da Academia Cearense de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste. Entre seus livros podemos destacar "Mar de sargaços", seu momento poético culminante, onde a metáfora da água em conjunção com a sensualidade revela uma escritora que domina a linguagem poética.

Nesse seu "Eternas lanternas do tempo" seu estilo poético vem diferente do apresentado em publicações anteriores, dada a motivação do momento retratado. Regine retrata a morte como uma "parede sem porta / um canto ferido / um forçado exílio". Não há uma preocupação formal, já que o objetivo desses atuais versos é um mergulho na estrutura profunda do seu ser para trazer à tona a dor da perda, o desencanto da ruptura que a vida arma para interditar as veredas dos sonhos. Ela comprova, ao longo de seus poemas, que a grande perda que se estabelece nesses momentos é a morte dos sonhos, muito mais terrível que a morte do corpo. A interdição de um projeto de vida é que nos assombra diante da morte.

É por isso que o momento mais pungente desse seu livro está no poema "O dia do adeus". Não dá para extrair dele um momento que se destaque dos outros, é um instante uno em um poema mais ainda. Toda a atmosfera do desfecho, colocada em palavras potentes e energizadas pela emoção, surge recriminando a incapacidade verbal para nesses momentos trazer à superfície o que dilacera no íntimo. Logo em seguida ela faz um trato com o partinte ao prometer: "não deixarei que tu morras na minha lembrança". E então vem a promessa de preservar também as digitais que o amado deixou nos talheres e nos pratos, e o cheiro ficado no travesseiro.

Essa busca se espraia pelos compartimentos dos objetos do lar e invade as reentrâncias do corpo para mergulhar nas profundezas da alma. Tudo se torna retorno. E para conseguir esse percurso só escalando a montaria segura do que mais o retém, a palavra. "Você é palavra". Pela palavra é possível pensar antes da fala, é possível segurar o gesto que no poema se esculpe. Pela palavra é possível laçar o amado exilado e trazê-lo ao aconchego presencial. "Ele está tão dentro de mim / que, se eu me mexer, / posso machucá-lo". Esse fenômeno da reconstituição é o milagre da palavra. E é por aí que Regine vai operando um renascimento do amado, emendando os cacos em que a parca o transformou.

Esse livro é a lanterna por onde a autora se guia pelas sombras da solidão e consegue até sinestesicamente reviver tudo que perigou partir-se definitivamente. "Seu olhar era tão quente / que sem querer / sentia ardor em minha pele". Todos os ais, todos os sais salivam tanto o momento da relembrança, que é possível o devaneio de até cobrar a permanência mais demorada do amado trasido. "Uma tarde e outra tarde. / Muitas tardes vão passando. / Que não tardes ao meu lado, / pois é tarde e vou findando". Tão forte é o amor entre os dois que a finitude do momento termina por preocupar. Daí que é preciso desfrutar ao máximo de todo esse enlevo revisitado: "Ousaria seduzir teu olfato / lambendo-te com hálito de hortelã".

Entre tantos jogos verbais que Regine Limaverde utiliza para se recompor, não deixa pois de, vez por outra, a sensualidade de outros momentos poéticos seus virem aos olhos do leitor. Ela tem tanta certeza do poder de suas palavras nesse mister, que chega até a dar conselho: "Quando te aproximares de uma mulher / e a desejares pelo cheiro, / Não lhe proponhas teus quereres diretamente. / Os atalhos são sempre bem-vindos. "Assim, Regine nos põe na cena da sua tristeza, purgando dores que deixam de ser só dela para respingarem no leitor. Ao mesmo tempo, exemplarmente, nos ensina que a palavra mitiga, e no amadurecimento que a dor a torna maior, é ela que pode serenar o existir de quem fica retendo quem teve que partir.


jbatista@unifor.br

27/11/12.

 

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