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A maquinaria do olho

Batista de Lima


O olho possui uma maquinaria que burila formas e fareja abismos. A questão é quando superfície e profundidade digladiam por melhor se colocarem. Nessa luta quem termina por ganhar é o terceiro elemento, o interpretante. Esse é o caso do livro "Palavra por aí à ventura", de Inez Figueiredo. São vinte e um contos em que a preocupação primeira da autora é a seleção das palavras certas para a instauração de uma atmosfera de subjetividade. Essa, no entanto, não é sua única preocupação, pois no nível da representação ela esmerou-se tanto, que a maquinaria do olho termina por impor-se.

Quem oleou essa maquinaria foi o mag(r)o Geraldo Jesuíno que tem se desfibrado ao longo dos anos para se situar como o melhor projetista gráfico destas plagas. Desta feita, no entanto, ele trava um duelo com a autora do texto e parece querer humilhar a palavra com seus traços e engaiolamentos de paredes só de portas, de escancaradas portas. Mas Inez, que não está posta em sossego, pôs logo sua íntima amiga, a palavra, em tão alto pedestal que o Jesuíno em questão continua forjando escadarias.

O resultado disso tudo é um livro bonito, tipo esses de importação que encontramos nas livrarias. O livro é um mimo de feitura. É um continente duelando com o conteúdo, a metonímia disputando com a metáfora o bom gosto do leitor. É um sabor se antecipando ao degustar. Para vencer essa batalha em nome da metáfora, Inez Figueiredo primeiro "é uma menina e tem cara de milagre", dona de uma "palavra decisória" e com palavras e cores limpa os olhos dorminhocos da casa-texto e teto. Depois ingressa numa espiral de imagens que se colam e instaura uma prosa poética para nos alertar de que seu trampolim literário foi construído, de princípio, nas entranhas da poesia.

Esse livro é, realmente, um monumento à palavra. A vida aparece desconexa, e para o seu atrelamento a uma lógica, é preciso encarrilhar palavras. De cada verbo se esvai um esguicho de sua força acumulada e aí, estranhezas são capturadas das entranhas dos símbolos. Esse é o livro dos símbolos, das sensações extraídas de palavras sangradas. Até o silêncio do desconhecido se torna fonte de sensações quando é revirado e prospectado. Tudo é diverso antes da colheita mas, depois das espigas superpostas, torna-se atilho.

Nessa montagem, Inez Figueiredo esmera-se como oleira de imagens entre barro e palavra. Nessa confecção o que mais importa é o ritual. Pode ser até uma tessitura de fios de sonhos, é importante que um ritual lhe sirva de respaldo. Mundo de minúcias, filigranas, bordados, ponto cruz, tudo é alinhamento do diverso para o brotar de uma lógica. A maquinaria do olho observador capta ao léu as palavras-capucho e delas retira fios que são levados ao tear em busca de soluções semânticas. Do tecido que daí surge, é que brota, em forma de tapete persa, a literariedade.

Tão bem feita essa urdidura que, para não ficar perfeita, a artista aqui acolá apunhala sua obra de arte para não irritar os deuses. É o caso, por exemplo, da acentuação gráfica, que às vezes é posta de lado como que para dizer que perfeição não é coisa de humanos. Mesmo assim, esse é o livro do encantamento, em que palavras e imagens se perfilam em biombos onde no seu por trás a autora, em primeira pessoa, tenta se esconder, mas, ao contrário, só consegue é universalizar-se. Daí que ela necessita confessar que esse é "o jeito melhor de se enganar a vida e quebrar o diabo do encanto".

Assim é que para falar de sua personagem Olívia ela precisa entender de pôr-de-sol, de sabores, miçangas, óleos perfumados, batons, flores exóticas e moluscos. Isso tudo para fazê-la "graciosa, sutil, irreverente, arredia, fugaz como uma ideia, dengosa, sedosa e com cheiro de algas marinhas". Olívia é, pois, antes de tudo, uma construção verbal, uma madona adornada de imagens impressionistas numa sesmaria de incitamentos. Olívia é uma oferenda para o sacrifício final de uma tragédia. É uma saudade pendurada nos contornos. Por isso é preciso desfiá-la com muito cuidado, como quem pega peixes com as mãos, como quem apacenta as lágrimas dos olhos das coisas.

Como as coisas cumpliciam-se num vagar por compartimentos, denota-se que a maquinaria do olho não é apenas rastreamento, é muito mais prospecção. Cada signo que lhe mostra a face é uma ilha fundando um continente de solidão. Nos subterrâneos da escritura de Inez Figueiredo há uma solidão que se quer dominadora. Entretanto sua escrita é uma catarse por onde esse peso se alivia. As coisas que lhe cercam, as memórias e a sua grandiosa sensibilidade abrem um canal por onde se esvai tudo aquilo que na estrutura profunda conspira contra sua necessária leveza.

Ao final da leitura desse seu mais recente livro, Inez Figueiredo impõe-se como narradora num universo onde sempre se comportou como poeta. A linguagem da poesia é transplantada para o seio da narrativa curta, colocando como personagem principal dessa sua nova vertente literária, a misteriosa palavra. Esse seu louvor à palavra começa com um sopro e termina em ventania. Transforma o texto em teto para um acasalamento com o leitor, na ânsia de uma ambientação a dois, onde a transgressão transforma silêncio em som, saberes em sabores, dores em odores e enigmas em claridades. É a maquinaria do olho a serviço da brotação de abismos.


jbatista@unifor.br

29/03/11.

 

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