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A leste de tudo

Batista de Lima


Pensei tanto nos outros que me esqueci de mim. Mas não dá para ser feliz dessa forma, pois em todos os outros lá estava eu latejando e esquecido de mim. (...) Certa feita me encontrei na estrada. Era eu me vendo pelo avesso.

Está muito tarde e eu continuo a leste de tudo, bem onde nasce a chuva. Não adianta virar o rio ao contrário nem deixar de ouvir histórias antigas que a velhice da serra me conta. Estou no meio da cidade que me conta histórias da inocência dos peixes. Estou no meio de um tudo que é nada. Ontem estive com a morte que me chamou para nadar e eu a rechacei com a vara da esperança. Coloquei os cachorros atrás dela, depois fui dormir fora de casa.

Pensei tanto nos outros que me esqueci de mim. Mas não dá para ser feliz dessa forma, pois em todos os outros lá estava eu latejando e esquecido de mim. Procurei nos bolsos a chave do retorno e encontrei retratos antigos de onde pessoas pulavam de dedo em riste.

Todos me mandavam retirar da chuva respostas para a vida. Ela começa fininha, vai engrossando, fala grosso contra o telhado e em pouco tempo vai esmorecendo e se finda lenta. Muito rápida a chuva, muito rápida a vida, tão rápida que não dá tempo pensar nela. Quando procurei agarrar a vida pelos cabelos, eram trunfas feitas de água. Tudo fluindo por entre os dedos.

Certa feita me encontrei na estrada. Era eu me vendo pelo avesso. Tão decepcionante, tão pequeno afigurei-me que desde então procuro me ver nos outros o que me nivela melhor. Cada vez que me tirei da casca, sangrou um ser miúdo que tem de crescer enquanto a chuva não diminui. É preciso segurar a força da chuva para no seu durante se conseguir força para o estio posterior.

Certa feita meu avô me curou de mordida de cobra, mas não ficou tão alegre. Depois me disse que há sempre uma cobra mordendo a gente por dentro e que um dia não vai ter como segurar seu veneno.

Não invejo porém a serra que há tempos observa esse clamor de existir. Todos se vão e ela é condenada à velhice. Prefiro a metáfora do açudinho de areia no riacho corrente. Represávamos a água enquanto podíamos. Quanta felicidade ver a força da água represada. Mas o açudinho ameaçava arrombar por um lado, e tapávamos. Depois por outro e por fim eram tantos pequenos arrombamentos que nossas mãos humanas não sustentavam a correnteza. Para nossa tristeza ia tudo de riacho abaixo e ficava só o cadáver da parede sangrante. Quanta semelhança com a vida, essa enfermidade que contraímos ao sermos gerados. Vivo calafetando os arrombamentos dessa existência, enquanto a correnteza apenas sabe aumentar.

Isso nos leva a certos dias em que temos grande saudade do mundo. É como se tudo fosse passando numa tela gigante e nós ficando sem conseguir carona. A única prova de que aqui estou neste deserto, são estas palavras que vão escritas. Nada mais se sustenta nem o que oralmente balbucio. É tanto que ontem aquele homem de 116 anos muito falou e pouco disse pois tudo se dissolveu no ar e já não me lembro dos seus clamores. Apenas ficou a imagem que continua na correnteza, balseiro que vai virar adubo. Por isso que muitas vezes coloco meu ouvido em contato com o chão e ouço os passos de meu povo numa procissão sem volta. Escavo e encontro o corpo das gerações que se acumulam, pedindo para falar. Por mais que escavo não deixo de encontrar raízes dessa árvore que sobre o solo sou.

Nesse monturo de meu povo, falta no entanto a palavra escrita para dar força às vozes que ouço. Nesse monturo que reviro encontro cacos de existires que pouco se conectam para que eu recomponha a cena familiar. Nessa escavação que enceto, há um eu que se partiu e se dispersa por camadas que se aprofundam no chão do tempo. A vida é uma pintura em movimento, vertendo lágrimas de sangue.

Nesse tempo todo em que mourejo, açudes sangraram pelos meus olhos, caminhos afundaram sob meus passos e o vento tem trazido alvíssaras e levado dúvidas. Na casa antiga os espaços se enchem de ausências e o cheiro das ervas que se esvai pelas frestas alerta para o esquecimento que condena seus antigos moradores. Não quero apenas ser figurante nessa procissão que flui sem saber o que se perfila do outro lado dessa parede sem portas. O que me resta é me pôr ao leste deste observatório verbal e tentar cravar essa angústia que se aglomera na correnteza do tempo.

Depois olho para ti e sinto as dores que sentes. Sem propósito vislumbro a corrosão que transportamos. Somos duas árvores que para não cair se encostaram uma à outra para esperar a tempestade ou o fim da chuva. Não há como não chorar nas noites trevadas, nem desconfiar de muito sol e pouco sal. Entretanto há uma lareira aqui guardada que alguns chamam esperança, aquela última figura da caixa de Pandora. Por isso que mesmo que muito ame, um dia terei de dizer como o vate lusitano, "tão curta a vida para tão longo amor".


jbatista@unifor.br

07/12/10.

 

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