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A herança do Coronel

Batista de Lima


Coronel Demo era um homem cheio de mistérios. Falava pouco, muito pouco. Mas o pouco que falava era uma lei. Nem aos amigos mais próximos confessava seus pecados. Padre Inácio nunca conseguiu confessá-lo. Só se confessava quando ia à Capital, e depois de procurar um padre bem desconhecido. Até para a sua mulher era um desconhecido. Seus filhos pouco o conheciam. Até seu choro ficara esquecido nos suspensórios da infância. O velho cofre que guardava no armazém só tinha uma chave que ele transportava na algibeira. Os vizinhos diziam que ele só se comunicava com seus animais: as vacas, os cachorros e os burros de carga. Para o resto, era silêncio.

Certo dia, madrugada alta, deu um grande grito, estatelou-se e morreu. Enterraram-no com honras de general. Nos dias seguintes, os filhos, todos formados, procuraram dividir os bens e se intrigaram de vez. Mas ficou o cofre. A chave não foi encontrada. Alguém até vaticinou que sua morte fora por engasgo ao engolir a chave. Era preciso, entretanto, abrir o cofre para dividir o espólio. Dos oito filhos, quatro queriam abrir o tesouro e quatro eram contra. Uns achavam que ali havia muita fortuna, outros desconfiavam que poderiam estar ali muitos mistérios que queriam silêncio. Foram à justiça e ficou acertado que o cofre do Coronel teria que ser aberto e que vinte por cento do que ali estivesse seriam divididos pelos dois advogados das partes.

Padre Inácio avisou que dez por cento daquela riqueza secreta seria para os cofres do padroeiro com o objetivo de reformar a capela que estava prestes a desmoronar. A relutância dos filhos só foi vencida quando o vigário mostrou recibos do dízimo pago pelo pranteado ao longo dos anos. Logo em seguida, o proprietário da mercearia Alvorada trouxe a conta que o Coronel havia deixado por pagar já havia três meses. Fato é que dívidas foram aparecendo à proporção que o cofre esperava por ser aberto. Chegou ao ponto em que alguns familiares já consideravam como melhor saída, jamais abrir aquela botija diante de tantas dívidas a pagar.

Era preciso, entretanto, abrir logo aquele cofre para acabar com tanta celeuma. Já havia, na cidade, um banco de apostas em que se avaliava o que estava escondido naquela botija. Mas finalmente trouxeram da Capital, com muitos gastos, um chaveiro especialista em abrir qualquer fechadura. O homem chegou com várias malas de instrumentos e secundado por dois ajudantes devidamente fardados e com o nome da empresa estampado nas costas. Eram muitas as exigências do especialista arrombador de fechaduras. Tanto é que antes de começar os trabalhos exigiu que todos os gastos fossem colocados no papel e assinados em cartório.

Esse chaveiro, que não queria ser chamado de chaveiro, mas de Mestre Oto, também estipulou seu percentual na fortuna, ou então não haveria cofre aberto. Já haviam se passado quase três dias dessas negociações cartoriais quando Mestre Oto iniciou seus trabalhos. Isso depois de já ter pendurado no Hotel Chic pequena fortuna com gastos de bebidas e alimentações para os três hóspedes e mais três moças que festejavam suas noites de volúpias. Fato é que pequena multidão começou a crescer na residência do falecido, pois todos queriam ver a fortuna do Coronel na hora da abertura do cofre. Foi preciso colocar policiamento permanente, pagando caro, para a segurança dos trabalhos.

O cabo Zezinho devidamente ornamentado com farda de gala reuniu os familiares do Coronel para em assembleia geral estipular gastos de horas extras dos policiais de plantão. Afinal, dizia ele, a polícia não tem obrigação de dar plantão para fortunas particulares. Depois de muitas discussões foi acertado que cinco por cento do espólio seria da segurança, pois a única viatura existente estava quebrada e teria que ser consertada. Enquanto isso já fazia uma semana que Mestre Oto farejava os contornos do cofre.

Foi numa tarde do sétimo dia que Mestre Oto conseguiu abrir o soturno cofre. Antes de mostrar o que havia ali guardado, solicitou do chefe da segurança que retirasse do recinto todos os curiosos, ficando na sala apenas os oito filhos herdeiros. Além deles aceitaram a presença do Padre Inácio, com o terço na mão, do Tabelião Anastácio, com livros para assentamentos e do Cabo Zezinho com as armas regulamentadas. Feito isso, a primeira peça foi retirada do cofre: um crucifixo de latão, tão desbotado e depauperado que nem a inscrição INRI aparecia mais. Depois não havia mais nada para desespero dos presentes.

Ainda diante da frustração inicial, Mestre Oto pediu licença para dizer que havia uma amarfanhada folha de papel com algo escrito, encontrada em uma gavetinha no interior do cofre. Todos ficaram curiosos para ler o conteúdo daquelas palavras bem escritas em português de cartório. A folha foi mostrada a cada presente antes que o tabelião juramentado passasse a fazer a leitura após pigarrear algumas vezes e espirrar diante do mofo daquele papel. Com muitas pausas e soletramentos as palavras foram saindo como punhais.

No papel estava escrito: "_ Meus filhos, as minhas fazendas estão hipotecadas no Banco do Brasil; o gado, no Banco do Nordeste; e as casas são da Caixa Econômica. Para vocês oito deixo a maior dos bens, a educação, que é uma herança que os bancos não hipotecam e que o tempo não destrói".


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 19/01/2016.


 

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