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A herança de Mutamba

Batista de Lima


Eram tempos de volúpia, noites de cerveja quente e dores de Dona Bilinha. Gerôncio Torres estava morrendo e queria deixar comigo seu baú de muitas histórias, sua riqueza mais bem guardada. (...) Já passava das seis horas daquela tarde histórica que o velho Gerôncio Torres escolheu para contar suas histórias (...). Tempos atrás fui chamado a Mutamba, para despachar com Gerôncio Torres, coronel de tempos velhos, produtor de gado de corte e de meninos que vão embora. De longe avistei sua casa, triste de aspecto, portas e janelas fechadas e paredes descarnadas. Dona Bilinha, sua consorte, me recebeu com xícara de café preto, torrado na rapadura, e cadeira de couro cru.

Desfilou por meus ouvidos a desventura do marido, os achaques de gota, a erizipela salmourenta, os pesadelos no sono, os delírios de acordado. Tinha colocado na cabeça que tinha herança para mim. Seus quarenta filhos de oito mães diferentes não gostaram da ideia de ser eu herdeiro do pai.

Só bem tarde eu descobri que minha herança eram palavras, por muito tempo guardadas por falta de quem as ouvisse. Mas o velho se lembrava de quando menino eu fora e ficava horas a fio, ouvindo suas lorotas, na fornalha do engenho de caldeiras fumegantes.

Recontou-me algumas delas, passadas no Manga Rosa, casa de ponta de rua, de mulheres postas a venda. Era o tempo em que Bié, puxando a concertina, varava as noites tocando e as moças se revezavam nos braços do coronel. Eram tempos de volúpia, noites de cerveja quente e dores de Dona Bilinha.

Contou-me que certa feita, na feira de Catolé, trocou tiros com a polícia e se não fora o bom cavalo de que era possuidor ainda hoje estaria mofando na cadeia do lugar. Nesse roteiro de aventuras, me ensinou a arrancar tatu, a pescar piau com as mãos e a conquistar moça sonsa em festas de padroeiro. Ensinou-me a farejar chuva nos cadernos da natureza e a torrar tanajuras para fazer tira-gosto de aguardente de cana, guardada debaixo do pote para beber no domingo.

Gerôncio Torres estava morrendo e queria deixar comigo seu baú de muitas histórias, sua riqueza mais bem guardada. Mostrou-me no canto do quarto, uma velha máquina de escrever, já desdentada de tecla e carcomida de ferrugem e me intimou para levá-la, simbolizando as histórias que eu devia escrever.

Depois voltou ao fio da meada, contando causos de campanha, de quando comprando voto se elegeu sete vezes, prefeito de sua Mutamba. Ensinou-me a furar chapa mesmo chapa não mais se furando, pois neste mundo modernoso se vota apertando tecla num processo todo eletrônico.

Nessa conversa demorada, que tive com o coronel, fiquei sabendo de cor, os nomes de suas mulheres bem como de todos os filhos que fizera dos dezesseis aos oitenta anos de idade. Das oito mulheres que teve, produzindo filhos seus, teve uma especial que lhe encheu os olhos d´água, pois foi de parto morrida no último filho que teve. Tinha ela perna curta, sendo cotó da esquerda, com metro e meio de corpo, cabelo cor de arroz doce, fogoió desde nascença, ninguém melhor do que ela na arte de fazer meninos.

Esse falar das mulheres, que teve na vida toda, apenas sete habitavam sem segredos de alcova nas histórias que contava. Dona Bilinha sua esposa, de cartório e de altar, não era assunto tocado em nossa conversação. Plantou nela doze filhos, oito machos, quatro fêmeas, todos já bem arranjados, formados com anel no dedo, alguns ricos na Capital, outros fazendo política nos mandos do município, mantendo o poder do pai. Só um deles deu desgosto ao velho coronel pois seu negócio era arte e distância de mulher.

Já passava das seis horas daquela tarde histórica que o velho Gerôncio Torres escolheu para contar suas histórias não contadas nos tempos de sua saúde. A enfermeira entrou no quarto com dez caixas de remédios, uma ampola carregada, para medicar sua morfina, pois o velho já sentia os penicões bem nascidos nas entranhas do entre-pernas.

Retirei-me por respeito para a sala lá de fora, onde seus filhos indóceis queriam ver a herança que o pai me tinha doado. Depois voltei ao quarto onde o coronel já dormia de boca escancarada, avisando a quem quisesse que na tarde do dia seguinte estaria sendo enterrado. Entrei e apanhei a máquina que me foi presenteada e saí de casa afora de trombolho na cabeça com todo mundo abismado da herança que eu herdei.

Não sabia aquela gente que um grande patrimônio, desses que não são matéria de se carregar nos costados eu ia levando comigo, doado por Gerôncio Torres. São histórias verdadeiras e outras bem mentirosas, por isso bem mais verdadeiras, que guardo aqui comigo, bem como a velha máquina de escrever, que escrever não escreve mais, mas que guardo, nos baús desta memória para precisão maior.


jbatista@unifor.br

09/11/10.

 

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