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A Fortaleza de Ramos Cotoco


Batista de Lima



Raimundo de Paula Ramos Filho, Ramos Cotoco, nasceu em Fortaleza em 1871. Também foi em Fortaleza em que veio a falecer em 1916. Recebeu esse apelido de "Cotoco" porque não possuía o antebraço direito. Entretanto, mesmo apenas com o braço esquerdo, tornou-se desenhista requisitado pela sociedade fortalezense no seu tempo de esplendor da "Belle Époque". Esse período de aformoseamento da Capital cearense, que transcorreu entre 1860 a 1930, foi vivenciado por Ramos Cotoco através de um olhar crítico.

Os trabalhos que lhe proporcionaram maior visibilidade foram o foyer do Teatro José de Alencar e a cúpula da Igreja do Carmo. São pinturas que ainda hoje despertam a curiosidade de quem frequenta esses dois equipamentos culturais de Fortaleza. Entretanto, seu trabalho que mais representa a efervescência cultural da Capital cearense está no seu único livro publicado, no distante 1906, em que as críticas aos desníveis sociais da cidade são expostas sem reservas. Ramos Cotoco possuía a vantagem de transitar com desenvoltura através das mais diferentes camadas sociais, captando as características de cada uma.

Em termos de escrita, Ramos Cotoco lançou, em 1906, um livro de poemas com o título de "Cantares Bohêmios", pela Empresa Typ. Lithographica. Esse livro faz uma leitura da Fortaleza da passagem do século XIX para o século XX, colocando-se, seu autor, visivelmente como crítico das diferenças sociais entre a elite fortalezense e as classes subalternas da cidade. A maior parte dos poemas do livro é composta de letras de músicas que ele compunha para serestas que os boêmios faziam nas ruas de Fortaleza da época. São poemas de pouca consistência literária, mas que valem mais pela crítica social que encerram.

Quem melhor analisou esses poemas foi o professor Weber dos Anjos na sua dissertação do mestrado. Em dois anos de criteriosa pesquisa, esse professor debruçou-se sobre os textos de Ramos Cotoco e sobre o contexto histórico da Capital cearense da passagem do século XIX para o século XX. Publicada em 2011, com o título "Ramos Cotoco e seus Cantares Bohêmios", essa dissertação traz o grifo das Edições Theatro José de Alencar. São 210 páginas de análises literárias e de informações históricas importantes.

Entre essas informações destacam-se aquelas que enfatizam o aformoseamento da cidade, a partir da influência europeia sobre os nossos costumes. Tão grande foi essa influência que se denominou de "Belle Époque" o período que se estende de 1860 a 1930 na cidade de Fortaleza. Esse período coincidiu com a culminância da produção algodoeira no Ceará. Navios saíam do Ceará para a Europa superlotados do nosso "ouro branco" e retornavam carregados de produtos da moda das grandes capitais europeias. Famílias abastadas de nosso Estado enviavam também seus filhos para estudar na Europa.

Em torno desse tema, há toda uma bibliografia que inclui inclusive pesquisas universitárias como essa de Weber dos Anjos e a de Sebastião Rogério Ponte sobre o tema "Fortaleza, Belle Époque". Além desses dois cientistas pesquisadores, merecem ser lidas obras de intelectuais cearenses que abordaram esse tema. Entre os principais podemos destacar: Gustavo Barroso, João Nogueira, Abelardo Montenegro, Blanchard Girão, José Aírton Farias, Miguel Ângelo de Azevedo, Edgar de Alencar e Otacílio Azevêdo.

Esse progresso repentino da cidade, com o surgimento de uma burguesia privilegiada, criou um fosso cada fez maior entre a elite e as classes subalternas. Enquanto os bangalôs surgiam no Jacarecanga, no Benfica e na Aldeota, as primeiras favelas iam sendo geradas para agasalhar a classe trabalhadora. Ramos Cotoco estava atento a esses problemas sociais.

Enquanto isso a burguesia refinava seu gosto e ia exigindo novidades de consumo e diversão. Surgiram o Teatro José de Alencar, o Liceu do Ceará, a Escola Normal, o trem, o bonde, os clubes sociais, os cafés da Praça do Ferreira, as agremiações literárias e o Passeio Público como point da juventude dourada daqueles tempos.

Foi um período em que surgiram organizações como o Clube Literário, o Centro Literário, a Padaria Espiritual e a Academia de Letras. As lojas de produtos importados iam surgindo e era charmoso falar francês e tocar piano.

Nesse contexto transitava Ramos Cotoco, notabilizando-se como pintor, poeta, caricaturista, cantor e compositor. Algumas de suas composições foram gravadas pelo cantor Mário Pinheiro, na casa Edison, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1902 e 1912. Para Weber dos Anjos, no entanto, é o aspecto flâneur de Ramos que mostra o lado obscuro da sociedade fortalezense. Afinal, enquanto outros cronistas da época entravam nas casas pela porta da frente, para analisar o povo da época, Ramos Cotoco entrava pela porta de trás. Ele mostrava os quintais, enquanto os outros mostravam as salas de visita. É esse cronista do povão que emerge da obra de Ramos Cotoco, que nos leva à necessidade de conhecê-lo melhor, principalmente através dessa obra de Weber dos Anjos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 26/01/2016.


 

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