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A formação social do Ceará

Batista de Lima


Melhor forma que encontrei para ler esse livro de Francisco José Pinheiro foi começando pelo final. Foi fazendo o mesmo movimento lectural que empreendi quando pela segunda vez li "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Primeiro tentando me encontrar para depois mergulhar nas informações mais distantes. Pinheiro, com sua peculiar humildade, titulou o livro de "Notas sobre a Formação Social do Ceará - 1680 - 1820". Poderia ser o título que sugiro acima.

O que chama a atenção nesse livro é que o fato histórico da época retratada por Pinheiro não mudou muito no tempo atual, apenas transportou-se, com uma vestimenta diferente. O êxodo do campo para a cidade não é mais por causa da seca, mas principalmente por falta de perspectiva, diante das incertezas que o interior ainda prescreve para os nativos. As estradas asfaltadas não estão escoando produção, porque ela não existe. Essas estradas são artérias abertas por onde sangra a mão-de-obra barata para as cidades.

Há daí, nessas "Notas", a construção de um discurso dicotômico encabeçado pela relação campo e cidade e passando por pecuária e agricultura, algodão e couro, história e ficção. Dessas relações binárias destacam-se suas pesquisas sobre as diferenças entre ficção e história, principalmente baseadas nas conclusões a que chegou Carlo Ginzburg. A partir delas, o leitor pode acrescentar seu ponto de vista, como uma reescritura do texto que lhe foi dado. Pode-se concluir que a literatura se alimenta da história e a história também pode se abeberar de fontes literárias.

Nesse caminho podemos citar o exemplo de "Luzia-Homem", de Domingos Olímpio, em que aparecem elementos reais do que aconteceu em Sobral por ocasião da seca de 1877 a 1879. É evidente que esse livro não está incluído nesse período abordado por Pinheiro, mas poderá estar no próximo volume dessa sua pesquisa. Também poderá vir a lume mais questionamentos feitos pelos leitores desse primeiro volume, principalmente a respeito da formação da mão-de-obra barata ocupada por negros e índios e suas relações com pecuária e agricultura.

É sabido que o índio adaptou-se mais à pecuária e o negro à agricultura. Depois, o percurso da infiltração do colonizador para o interior do Estado, seguindo as trilhas do boi pelos leitos dos rios. Outra vertente que pode ser trabalhada é a importância do couro, superior economicamente à própria carne. O problema do escoamento da produção, diante das dificuldades de locomoção dos sertanejos sem vias de acesso aos centros consumidores ou de exportação, era visível. Essas são questões que vão surgindo a partir da leitura desse livro. Afinal, o texto tem sua importância pelo que ele pergunta ao leitor.

Também é importante encontrar nesse livro de Pinheiro as delimitações de certos fenômenos que contribuíram para nossa consolidação social. Ele conclui que nossa formação social começou a se constituir em fins do século XVII para se consolidar na segunda metade do século XVIII. Isso não impediu, no entanto, que grandes latifundiários se considerassem superiores ao próprio governo, agindo com excessos de arbitrariedades. Por isso que quando das disputas entre dois poderosos proprietários, o governo ficava numa neutralidade comprometedora para aderir depois ao vencedor.

Essa pesquisa do professor Pinheiro foca um período de nossa formação social em que o produto de exportação que mais divisas trazia para o Ceará era o algodão. Navios saíam dos nossos portos abarrotados de nosso ouro branco, para voltarem com tecidos manufaturados no exterior a preços majorados. O cultivo, a colheita e o transporte do algodão implicavam a necessidade de uma mão-de-obra à disposição dos grandes proprietários. Daí a lei contra a vadiagem que viria a atingir principalmente os pobres livres que seriam presos se não estivessem a serviço, principalmente, dos grandes fazendeiros. Era preciso brocar, plantar e colher as arrobas do algodão.

Mesmo com essa necessidade de mão-de-obra, não foi tão presente a utilização do escravo no nosso crescimento econômico, e sim dos pobres livres. Daí que o ocorrido no Ceará difere do que aconteceu nos outros estados do Nordeste, onde a participação escrava foi bem maior. Isso levou a que no Ceará fosse incentivada a criatividade tecnológica que levasse ao surgimento de inventos que resolvessem a questão do beneficiamento do algodão. Para acompanhar esse fluxo de produção era necessário também a melhoria das estradas, das ribeiras que um dia viriam a se tornar nas nossas rodagens. Foram também estabelecidas vilas para reter a população trabalhadora.

A estrada melhor para percorrer o Ceará no período que vai de 1680 a 1820 consiste no percurso que se pode fazer através desse livro de Francisco José Pinheiro. O texto constrói uma via de acesso à antropologia do nosso Ceará. Seu povo e as relações de poder, que vigoraram no processo de nossa formação social, se estruturam de forma cronológica mostrando a estratificação entre proprietário, pobre-livre e índio em relações de conflito enquanto os poderes constituídos pouco interferiram. Uma coisa é certa, o ranço dominador que ainda hoje existe nas relações entre proprietários e trabalhadores no nosso Estado tem a sua origem na nossa formação social. Francisco Pinheiro escreveu um tratado sociológico da nossa formação cultural, indispensável para pesquisadores, didático para nossos estudantes e necessário para qualquer cearense que queira se conhecer.


jbatista@unifor.br

23/10/12.


 

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