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A felicidade das palavras


Batista de Lima


Há palavras atraentes que se enamoram facilmente das pessoas. Além disso, trazem com elas algumas amigas, o que termina por acontecerem frases de afeto e de ternura. As palavras antipáticas e de poucas amizades têm dificuldades de se enturmarem e formarem frases. Palavras antipáticas são palavras infelizes, aquelas que nasceram a fórceps, arbitrárias. As palavras mais motivadas, aquelas que mais se aproximam do que retratam, se lançam nos braços das frases e na boca dos falantes.

A palavra se torna feliz, às vezes, pelo local em que se coloca. A palavra "avante" é comum como muitas outras. Acontece que ela apareceu como nome de um caderno usado por estudantes na década de 1960. Na capa estava lá aquele nome implorando ao aluno que fosse em frente. Era para ir em frente escrevendo e chegar à capa final onde estava transcrita a letra do Hino Nacional. Também a cor desse caderno tinha tonalidades da Bandeira Nacional. Era como um convite a avançar em busca de um patriotismo.

Outra palavra que sempre considerei mal empregada foi "axila". Muito mais apropriada é a vulgar "sovaco". "Axila" seria o nome correto para "espirro". São essa incongruências que chamam a atenção de quem brinca com palavras. Os brinquedos verbais são empolgantes para quem gosta de ler e principalmente para quem gosta de escrever. Botar palavras para cruzarem a fim de reproduzirem palavrinhas novas é criar um plantel que só tende a aumentar. Essa relação entre as palavras, uma verdadeira sociologia verbal, é que promove a sintaxe. E dessa sintaxe, que é um movimento horizontal, surge a semântica que é uma verticalidade que vai brotando. É um enraizamento de sentidos que pode produzir a subjetividade de um texto.

Não sei bem qual a primeira palavra que pronunciei. Acredito que tenha sido "mamãe". Geralmente é assim que acontece, porque essa é uma palavra feliz, como também, na sua companhia são felizes: "mamar", "mamão", "manga", "maio", "manjar" e "Maria". Essa última, que é nome próprio, nome de mulher, é portadora de grande felicidade, como outros nomes próprios do tipo: "Glória", "Vitória" e "Ana". Para os nomes próprios masculinos fico com a beleza de: "José", "Otávio", "Pedro" e "Paulo". É bom esclarecer que não encontro nenhum atrativo em colocar nome estrangeiro em crianças. Também nomes em empresas e vestimentas, que desrespeitam a nossa língua, comprovam falta de bom gosto e de patriotismo.

Sempre achei interessante, desde criança, a posição das casas do sertão. São casas viradas para o nascente. Daí que vinha minha conclusão de que no "nascente" é onde "nasce" o "ente", no caso, o dia. É também onde nasce o sol e nasce a lua. É onde o relâmpago anuncia o trovão que antecipa a chuva. Esse espetáculo natural é visto o tempo todo pelos moradores que deixam essa sinfonia natural entrar de casa a dentro pala porta da frente. O oposto de tudo isso é o "poente". É onde o "ente" vira "pó", um verdadeiro final para tudo. O sol lá se enterra, o dia se afoga, levando as nuvens, os ventos, as chuvas. É um local de grande boca que engole o que de bom o dia produziu.

Por isso que considero importante cada pessoa ter seu canteiro onde possa cultivar palavras. Se bem plantadas, elas produzirão muito encantamento. Cada um tem seu canteiro particular, em que palavras se reproduzem com a cara de quem as cultiva. Daí que são os poetas os maiores cultivadores de encantamentos. Eles tanto sabem cultivar palavras que encantam a si próprios como aos outros. Primeiro eles se narcisam com o que produzem, e depois encantam os outros. É importante saber lutar com palavras. Não precisa ser estudioso para que isso seja conseguido. Parece que há pessoas que já nascem com um certo dom de adestrar as palavras.

Adestrar palavras é uma arte em que se especializam os poetas. Muitas vezes é preciso desmontá-las de seus significados corriqueiros para que elas se vistam de novas roupagens. Outras vezes necessário se faz ressuscitá-las dos dicionários para um renascimento revigorado. É importante que as palavras do nosso pastoreiro respirem com nosso fôlego e trepidem com nossas emoções. Que elas aprendam nosso caminhar sem esquecer o latejar do chão e os suspiros dos que nos cercam.

A felicidade das palavras está muito mais naqueles que delas se enamoram do que nelas próprias. Trabalhar com palavras é uma culinária em que mais valem temperos do que verbos. São as emoções que servem de canteiro em que elas criam sustanças. Palavra é como água de cacimba, vem com o sal da terra e o suor das pessoas. Palavras precisam de pulsões, tensões e um estopim para explodirem. São elas que legitimam nossa memória. Trazem as experiências do passado e as colocam na mesa do presente para a segurança do futuro.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/12/13.


 

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