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  • Foto do escritorBatista de Lima

A feiticeira

Batista de Lima




Até hoje ninguém sabe a origem de Maria Raimunda. Um dia ela chegou, sem avisar, às cercanias de Sipaúbas. Trazia de companhia sete cachorros pretos e uma dúzia de velas brancas. Bebeu água nas casas e garapa no engenho, depois recolheu-se num socavão do pé da serra. Sozinha ergueu tosca choupana e acomodou sua esquisitice. Só ia às casas do sítio para encomendar fósforo, sal e rapadura. Nesses poucos contatos, descobriu-se que a estranha mulher era rezadeira. Tirava quebranto de criança e encosto de velho. Curava bicheira de animal só na base da reza forte.

Espinhela caída, caboge e dor no espinhaço ela acabava tudo. Até conseguia adivinhar.

Aquela mulher estranha sabia com antecedência o dia da primeira chuva do inverno. Tornou-se uma fonte de consulta para os moradores de Sipaúbas. Ajudava ao Cabo Zezinho quando era preciso prender criminoso foragido. Ela dizia exatamente onde estava o procurado. Maria Raimunda derrubava qualquer feitiço e descobria até pensamento. Ai é que morava o perigo. Descobriu, sem sair de casa, que Coronel Inácio tinha uns filhos de moita, coisa que Dona Bilinha, a esposa, não gostou de saber. Descobria quando alguns moradores iam à cidade vizinha e visitavam o lupanar do Manga Rosa. Dessa forma Maria Raimunda começou a preocupar os homens de Sipaúbas.

Certa feita o Coronel Inácio mandou Terêncio Espinheira fazer um serviço de tocaia e ela já sabia antes do acontecido. O pior foi quando ela previu de véspera que o mesmo Terêncio matador, no dia seguinte, acompanhado de Ivo Capador, ia lhe tirar a vida a mando dos grandões da terra. Ajeitou a mucuta dos teréns e antes que o sol virasse, já estava ela em direção ao sem rumo. Os dois cabras do Coronel encontraram o barraco vazio de gente, mas cheio de restos de feitiçaria. Tocaram fogo na casa e voltaram desalentados aos protestos do patrão. Aquela bruxa dos 600 capetas usara o livro da capa preta, de São Cipriano, e se livrara da morte certa, indo se esconder no sertão do Maranhão.

Dizem que foi se arranchar em Codó, outros falam em Barra do Corda, mas parece que foi no Tuntum, de Antônio Moreno. Fato é que sua fama varou o Piauí e criou raiz no Maranhão. Deu-se então que Maria veio a juntar seus panos de sono com os de um tal de Manelantônio que mesmo estando por lá era partido daqui. De tanto bater na mulher foi o marido que sucedeu morto em engasgo de osso de peba. A feiticeira viúva estava e carpideira tornou-se. Não perdia velório nem sentinela, encomendamento de corpo nem missa de sétimo dia. Tanto gostava da morte que passou a adivinhar quem seria o próximo morto naquela região timbira.

Sua técnica era infalível. Quando o morto descia à cova e a terra descia atrás, Maria Raimunda entrava em transe e gritava com todos os bofes o nome do próximo cristão a ser enterrado naquele cemitério. Não errava nunca suas previsões. A população já ressabiada desse costume, quando morria alguém mandava o delegado prender a feiticeira na delegacia da cidadezinha. Acontece que a carpideira adivinhadora quando sabia de doente moribundo, escondia-se no matagal mais próximo e só aparecia na hora do enterro com sua previsão fatídica. Foi então que o povo da terra passou a enterrar seus mortos em cidades outras, deixando Maria Raimunda sem prever o falecido próximo.

Houve então a morte do Prefeito da cidade. Antes passou quase um ano no sofrimento terminal. Maria Raimunda preveniu-se depois que soube que o prefeito querido seria enterrado no cemitério da cidade, no túmulo dos seus familiares. Afinal aquele homem probo pedia incessantemente por essa honra. Começou então a procura pela feiticeira, mas ninguém a encontrou. Houve as exéquias com o sino badalando o dia inteiro, o comércio fechado e o vice já havia decretado sete dias de luto e com as escolas de recesso. Apareceram, para a solenidade fúnebre, os prefeitos da região dois deputados estaduais e um federal. Teve gente que mandou fazer roupa nova para acompanhar o cortejo.

Tudo ia se dando segundo as tradições religiosas. Houve missa de corpo presente, benzedura dos pés do morto e muito discurso na capelinha do lugar. O cortejo até ao cemitério tinha alunos da escola municipal carregando as coroas de flores e os homens dividindo as honras de pegar as alças do caixão. Era tanta gente que quando o féretro entrava no campo santo, ainda havia gente saindo da igreja. E mais discursos de beira de cova foram pronunciados sobre a honradez e glória do pranteado. Assim, o caixão começou a descer a cova quando um grito de estertor emanou de uma moita próxima. Era Maria Raimunda aos gritos que queria fazer um comunicado final.

A feiticeira subiu no monte de terra da cova e bradou em altos gritos que o próximo a morrer seria o primeiro que saísse do cemitério. O comunicado deixou todos embasbacados pois sabiam do poder adivinhatório daquela mulher. E ninguém a partir de então ultrapassou o portão do cemitério. E o tempo foi passando quando já chegava a meia noite, os de fora começaram a trazer água, paçoca e rapadura para aquela multidão presa, olhando para um portão aberto. Assim a noite passou e já ao quebrar da barra várias sugestões de resolução do problema haviam sido sugeridas e nenhuma posta em prática. Foi então que surgiu a ideia final. Às oito horas daquela manhã de nuvens densas, Maria Raimunda foi retirada de sua moita, com tudo que era seu e posta para fora daquela casa dos mortos. Louca e aos gritos foi lançada na rua descalça e saiu correndo. Uma fóbica que vinha chegando, dirigida por um caixeiro viajante, pegou-a de cheio. Estava lá a feiticeira ensanguentada e morta, sobrassando doze velas brancas e velada por sete cachorros pretos.


FONTE: Diário do Nordeste - 14/08/2018.


 

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