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  • Foto do escritorBatista de Lima

A fala das coisas

Batista de Lima


Tem certos dias em que não penso em nada. São dias de grandes descobertas. Começo observando a infância das coisas. Uma mesa não é mais uma mesa. É um jacarandá da mata. O silêncio não consegue silenciar seus gritos estridentes. Um pote são pedaços empilhados de meu povo antigo que em conchas sustenta água para minha sede. A rede me retorna ao ninho em busca de asas para meus sonhos. Não dá para ficar olhando distâncias que viram palavras. É preciso fechar os olhos para ver mais longe.

Tem certos dias em que noto as coisas me observando. Há uma certa ternura no olhar das árvores. Os pássaros tentam me contar novidades mas se aborrecem do meu pouco ouvir. Às vezes fogem com medo da minha ignorância. Mas há sempre um olho grande observando meus passos, as desobediências e até certos sacrilégios do imaginar. Quando pesco de anzol, me amarro nas profundezas. São profundas águas, líquidos que me fornecem sólidos. Nessas horas de pescarias, também pesco nas profundezas que carrego, pensamentos-peixes.

Há certos dias em que precisamos pescar pensamentos nesse deserto que às vezes somos. Ligar duas funduras, fingindo que se pesca. Pescar é lembrar. Lembrança é bicho-de-pé coçando na cabeça da gente. Quanto mais coçamos mais vontade de coçar. É criar caminhos em cima de caminhos, botar de novo o trem nos trilhos há muito andados. Só de pensar a chuva, molhar-se, constipar-se de friezas por apenas pensar.

Tem certos dias em que as tanajuras nos pedem alvíssaras. Fazem pantomimas para instalar a chuva. As biqueiras choram desperdícios e melancias fisgam no anzol que pesca os ontens e anteontens. E por falar em pescarias, os poetas se põem às beiras e pescam peixes fora d´água. Eles educam a tarde, ensinando-lhe cantigas de ninar. Colocam crianças longe das ventanias, em redes tecidas de histórias. Nas tardes de domingo, contam os passos que as horas tramam e encabrestam o tempo com cordas d´alma.

Tem certos dias de encanar ventos a pedir distâncias para os longos passos do olhar sem peia. Mas tem dias de reza forte, nuvens feito serras e calores antigos de vidas que nos cercam mas não vemos por não sabermos olhar.

Há certos dias com tantos afazeres que o esquecimento empareda aconteceres. Antes da manhã entrar em serviço de parto já a tarde se aglomera e a noite veste seu luto. São dias de pouco afeto e muitos calos. São dias de sapato apertado e suores conjugados, um mar que viajou de trem e nuvens que esconderam o leite.

Há dias em que a vida quer viver e quebra os relógios, destrói as paredes, entorta os caminhos e baila e chora e ri. Nesses dias de trovoadas, a vida vive e estribucha na gente, os loucos dão lições de bem viver e o luar para para ver e dar passagem ao desfile dos pontos cardeais, e um pecador se arrepende de ter flechado o São Sebastião que sangra no altar.

Uma mulher do povo vem oferecer seus olhos ao olhar de Santa Luzia. O rapaz deixa o cigarro a pedido da noiva que não para de soluçar. O velho triste esfaqueia a água se vingando da chuva que lhe molhou as pernas. Um miçangueiro traz uma carga de palavras novas em caçuás feitos de frases. A tarde sapecada e crua é servida numa mesa circunspecta e nua para comensais que erraram de fome. Um menino quase rapaz inventa de se afogar num rio que ele mesmo inventa. Um pássaro passa na porta e avisa que Deus está ocupado botando asas nos bichos e fazendo cócegas no rio para fundar cachoeiras.

Certa manhã de abril o cigano Chatô quis vender a meu pai uma panela de barro onde Cristo cozinhou seus peixes. Depois trouxe um xarope de Europa feito de peles de santos mortos no tempo de Nero, próprios para evitar a morte.

Durante tudo isso, as coisas continuam me observando com olhar reprovativo. Resmungam e se cobrem de pó que é o luto que lhes acompanha. A mesa fala pelos cotovelos, conta histórias dos mais velhos, põe as mãos nas cadeiras e exige respeito dos comensais. A mesa é uma avó inevitável, que colhe cada palavra que se diz ao jantar e tece uma colcha de cores, de dores e medos. Não se pode pecar à mesa, nem em pensamento, para não transformar o cabrito servido em pai-de-chiqueiro assombroso.

Por falar em animais, há certos dias em que eles se envergonham de nossos pecados. A vaca leiteira esconde o leite e libera o coice. A gata "mufana" esconde seus gatinhos, no seu debaixo, para poupá-los da fúria de nossa perfídia. O cachorro "javalí" foge para a serra a confabular com tatus. O jumento "macaúba" escoiceia com vigor as falsas juras que tem de ouvir. O galo carijó desperdiça galinhas para despovoar os ninhos e escassear as panelas.

Nessa greve geral dos bichos, mais a vigilância das coisas, só nos resta voltar atrás e reconstruir a arca da salvação. Nesse mar de incertezas, que certos dias nos colocam, é preciso navegar no rumo do que não tem rumo. É preciso deixar que a chegada se construa. Ouvir o solilóquio das coisas, suas lições de ir em frente. Afinal, é como dizia o sábio do meu avô: quando as coisas não vão como a gente quer, é melhor a gente ir como as coisas vão.


jbatista@unifor.br

04/01/11.

 

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