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A fala das cidades

Batista de Lima


Temos muitas peles para um mesmo abismo. Vivemos tentando proteger nossas fragilidades em vestimentas, casas e cidades. Procuramos o outro como forma de dividir nossos afetos, medos e incompletudes. Nossos ninhos quadrados mostram o quanto fugimos da natureza em que os ninhos são redondos. As cidades são ninhos de linhas retas horizontais e verticais. Nossas cidades são esculturas quadradas ou retangulares onde tentamos aprisionar os nossos medos. Antigamente elas eram cercadas de grandes muralhas. A Troia, da Ilíada, se reproduz hoje com câmeras, cercas elétricas, cancelas, viaturas e homens armados.

Há cidades cantantes. Entretanto, quem canta seus males espanta. Rio de Janeiro é a cidade maravilhosa do samba, da bossa nova e do carnaval, mas é uma cidade triste. Triste por estar amedrontada. É uma cidade órfã desde que no início da década de 1960 lhe tiraram os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, e lhe deram as costas. Foram para o Planalto Central, para Brasília. A cidade empobreceu. A economia que a sustentava, mingou. A volúpia econômica do poder deu-lhe as costas. Era preciso arranjar-lhe patrocinador.

Veneza é uma cidade tristemente bela. Afunda nas águas lentamente. Thomas Mann a ilustrou muito bem no seu livro “Morte em Veneza”, e Luchino Visconti imortalizou-a no seu belo filme homônimo. Gustaw o compositor procura-a para o encontro com a morte, diante da vitalidade de Tardzio. Eros e Tanatos digladiam-se. O autor do livro e o diretor do filme fazem a apologia da homossexualidade irrealizada na maturidade. Tardzio é o Eros personificado, Gustaw encarna o Tanatos que vagueia pela cidade doente na forma do cólera. Assim pode-se dizer que os dois extremos da vida se tocam e se dependem mutualmente.

Veneza afunda-se na água. Outras cidades foram vítimas das águas. Mas uma cidade precisa de uma água por perto. Recife, Rio e Veneza e suas águas poluídas. Por isso que não é só possuir suas águas. As cidades precisam também cuidar de seus mananciais. Assim também cuidar de sua memória, cultivar os seus fantasmas. Brasília tem seu lago artificial, mas não possui seus fantasmas. É uma cidade desprovida de memória, como a nossa Nova Jaguaribara.

Roma, a cidade eterna, é eternizada pela sua história. É toda construída sobre túmulos. Quantos fantasmas! Quantas histórias de vidas sacrificadas. Por isso é uma cidade de memória inesgotável. Perseguidores e mártires convivem através dos seus espíritos que vagam por monumentos que tentam ligá-los ao presente. O cinema não conseguiu esvaziar seu potencial mágico. O neorealismo de Rosseline, Antonioni, De Sica, Feline, Visconti e Pasoline não esvaziou a fonte. Os épicos da Metro também não concluíram suas jornadas pelo passado heroico. Roma ainda tem muito o que contar.

A polis possui multifalas, por comportar-se de múltiplas maneiras. A melhor delas é pela memória. A história é a mais estridente das falas de um conjunto humano. O cemitério é um amontoado de falas memoriais. Ali os fantasmas disputam em nós o espaço das lembranças. Foi ali em que se deram os sepultamentos. E foi por ocasião do primeiro sepultamento que o homem fundou a memória. Precisamos guardar a imagem do corpo inteiro de quem nós amamos. Foi aquela imagem inteira que nos acompanhou por uma vida inteira. A cidade fala pelos seus cemitérios.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 13/08/19.


 

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