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  • Foto do escritorBatista de Lima

A fala da mesa

Batista de Lima



Naquele dia resolvi acordar a cidade. Estava cansado de ser acordado por ela, todas as manhãs. Era um dia especial, um domingo, comandando um feriadão. Todos foram embora e a rua estava sozinha, curtindo sua soneca na manhã nublada. Comecei primeiramente coçando seus pés de muro, com olhos perscrutadores. Aqueles pés, que eu nunca havia reparado, sabia que eram sujos, mas não tanto, quanto agora constatava. E feito bicho, comecei remexendo aquele lixo acumulado nas unhas das calçadas. Não sabia que cada casa era uma fábrica de produzir lixo. Que cada casa expelia pela calçada o que o portão engolia em sacos plásticos. Naquele dia não eram casas que se viam. Eram tocas de animais que vomitavam o resultado de uma má digestão, que se operara lá por dentro. Era como se ali estivessem dormitando seres terminais, expelindo restos hospitalares. Mesmo assim, não havia ninguém naquelas tocas. Todos se tocaram para outros campos, para sujarem outras paragens. E assim, as calçadas não se preocuparam em fazer o asseio matinal e tudo parecia desfigurado, mostrando a face da ressaca de uma noite de solidão. Casas sem pessoas não se asseiam. A cidade, pois, parecia um museu de insanidade. Era uma colmeia, cujas abelhas voavam em busca de pomares ignotos. Eram casas tristes, de olhos fechados, faces desfiguradas e solitárias. Um deserto suspirava pelo asfalto e o sol da manhã desfilava mais livre com seu bloco de raios dançarinos. Depois de muitos quarteirões andados, sem presença humana, eis que uma criatura foi vislumbrada na esquina, feito ovelha desgarrada. Ao nos avistarmos nos escondemos, como descobertos violadores do repouso da urbe desabitada. A solidão em cultivo não permitia aquele encontro. Entretanto, o que mais chamou atenção nessa escavação das possibilidades da rua, foi encontrar uma mesa. Era uma velha mesa colocada na calçada para que o carro do lixo a levasse. Não era uma mesa inteira, era quase toda em pedaços. Pedaços de madeira, pedaços de história, pedaços de umas vidas que sobre ela se fizeram. Patamar de pastagem, sobre ela, comensais se refestelaram por anos. Pratos e mais pratos ali foram servidos para a sobrevivência física de uma família. Mas agora estava ela ali, abandonada, solitária e gritando histórias fumegantes e temperadas. Na certa, uma nova mesa, sem histórias para contar, sem manchas ancestrais, insípida e inodora vai lhe tomar o lugar. Por isso que a velha mesa lacrimeja, no abandono, histórias natalícias, discussões familiares, e a gramática dos afetos olvidados. A tudo ela ouviu e sentiu silenciosamente. Agora está ali como um patrimônio histórico lançado ao lixo. A família não notou que sua história foi feita nos contornos daquela velha dama de madeira, maternal miolo de aroeira, maquiada de sutil verniz. Os conflitos ali se resolveram e os segredos ali se revelaram. A mesa, silenciosa, no entanto, deixa-se levar, sem perder a nobreza, ao cadafalso das coisas desprezadas, que é o aterro sanitário. Aquela página escrita, verdadeiro ouvido de confessionário, leva consigo uma saga, uma ilíada em odisséia. Serviu de parlamento para todo um clã, onde as leis do alpendre se abraçavam aos decretos da cozinha, onde os segredos da alcova se curvavam aos santos da parede. A tudo ela presenciou no seu silêncio resignado e na sua saudade da floresta mãe, de cujos braços foi arrebatada para a definitiva escravidão. Agora posta no seu definitivo desassossego, ela grita toda uma memória dos segredos que aquelas portas trancadas tentam esconder da gente. Os moradores quando a colocaram de porta a fora como um traste velho, não sabiam que iam com ela, que continuavam sentados na sua ribanceira, escrevendo nas suas tábuas mais histórias familiares. É tanto que para o observador cuidadoso, sinestesicamente, dali se esvaíam cheiros de quitutes que os anos presenciaram, histórias carinhosas de confeitos existenciais, lundus e xodós. Em torno daquela mesa, parabéns foram cantados para meninos desconcentrados e discursos foram feitos para adultos cochilantes. E naquela parede em frente, aqueles retratos amarelos, de pudor e precaução, alertam para o relógio que sem preguiça não enguiça, noutra parede esquecido, contando o tempo vingativo. Estão ficando para trás aquelas cadeiras irmãs, esperando também o dia em que o destino da velha mesa será o destino delas. Já os pratos que por lá passaram, aqueles que ainda resistem, um dia vão virar cacos. Os ornamentos da mesa, uns se foram, outros ficaram, mas a toalha estampada foi sua veste de dia, foi camisola à noite e podia muito bem, nesse caminho sem volta, servir de mortalha e guia para a velha mesa entristecida de sua nudez na calçada. Mesmo assim, abandonada, aquela mesa que ali estava, muito maior se apresentava, que a casa que lhe conteve, e agora a deportava. Aquela mesa estava viva, vivíssima, velha dama governanta. Ouvira a incontinência dos netos, os arroubos dos namorados, os excessos dos avós, o mandonismo dos pais. Ali comeu-se, bebeu-se e soluçou-se de garfo e faca em punho numa guerra sobre pratos. Ali os dias foram comidos numa ganância tão grande que os comensais, nas suas ânsias, jamais desconfiaram que eram os dias sutis que lhes comiam primeiro.

 

21/04/2009.

 

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