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  • Foto do escritorBatista de Lima

A fala da casa

Batista de Lima



A casa é nossa terceira pele. Vem logo depois da epiderme e da vestimenta. Se tudo em nós é motivo de fala, não é surpresa que a casa fale pelos cotovelos. Maternal, ela nos protege do sol, da chuva, dos perigos de fora e das intimidades de dentro. Fala pelas portas, pelas janelas, mas fala principalmente pelos moradores que aninha. Esses moradores têm na porta, uma fronteira determinante, exatamente onde o mundo de fora esbarra no mundo de dentro. Por essa estação passa-se para o conhecimento do mundo da claridade. Ao contrário, pela porta, também se adentra a um mundo interior da moradia onde a sombra põe ovos de subjetividades. Nesse mundo interior da casa, Eros e Thânatos coabitam cada qual com seus momentos de domínio. É ali onde derivamos entre o amor e a morte. Há, no entanto, no mundo significante da casa, uma inexplicável tendência para as linhas retas e as figuras retangulares. As paredes, os vãos, os tetos, os pisos, os terraços, as salas e os quartos, todos são medidos a metros quadrados, como se o construtor não fosse capaz de pensar em metros redondos. Essa tendência leva a que os utensílios e o mobiliário também apareçam forjados em linhas retas. Há um distanciamento entre a objetividade das dimensões retangulares e os afetos, as emoções e o sombrio que a casa encerra. Devia esse mundo da intimidade ser arredondado como o útero, nossa primeira, mais aconchegante e mais afetiva moradia. No entanto, até nossos teres são retangulares: camas, mesas, fogões, geladeiras. Isso tudo, num mundo onde subjetividades e objetividades se digladiam por seus espaços. Até parece que o redondo só tem guarida no mundo simbólico. Parece que muito mais previdentes do que nós são os pássaros e as aves que usam o redondo para a construção dos seus ninhos, das suas casas. O joão-de-barro a cada inverno trabalha na construção de sua casa arredondada e com porta de entrada protegida das chuvas. Uma casa suscita fomes e fastios. Fomes dos que recorrem à cama e à mesa. Fastios dos que se recolhem nos cantos, nos porões e nos sótãos. Não há casa sem porão. Quando o porão não é um empreendimento de alvenaria, fruto da engenharia do construtor, é uma construção de subjetividades. Por isso que porão não tem fim. Pelo porão chega-se a todos os ancestrais, a tudo revelável e interdito. É no porão onde se enraíza a árvore genealógica do clã. É no porão onde se instala o borralho das eras que o tempo sedimentou entre os familiares. Outro elemento importante, principalmente da casa antiga, é o monturo, onde os restos das gerações foram se acumulando. No monturo, cada camada que se desvenda, é a história escrita por uma geração. É possível recompor pratarias a partir dos cacos encontrados. É possível até, sinestesicamente, se recompor a mesa com os quitutes de outros tempos. Todavia, nem só de porão e de monturo se faz uma casa. Ela se completa com o sótão. O sótão é onde as esperanças se reproduzem, é onde os sonhos embarcam. É o futuro instalado sobre as cabeças dos moradores, enquanto o porão é onde o passado suporta o peso do presente que lhe fica sobre. Na casa tradicional sertaneja o sótão é utilizado para prover o futuro. É tanto que ele retém o compartimento onde se esconde o arroz com casca, com sua cor dourada. Mas também o jirau é uma espécie de sótão. Geralmente no jirau é onde se coloca o milho em palha. E é importante que fique próximo e sobre o fogão, afinal é a fumaça do fogo aceso que impede que insetos estraguem as espigas de milho ali guardadas. O interessante é que ao tirar a palha do milho o morador suja as mãos de foligem de meses em que a fumaça purificou as espigas. É importante que ao se abrirem aquelas palhas que sujam as mãos, de tão pretas, surja o milho cor de ouro, puro e belo. Acontece o mesmo com o ouro que é encontrado entre a ganga impura. Cada caroço de milho parece uma pepita. Uma casa não se acaba nunca. Se está habitada, ela está em construção. Ela é como a ostra e seu habitante é como o molusco, que enquanto vivo constrói, modifica e até transporta sua morada. Por isso que o morador, mesmo não estando sob o teto, está com ele às costas. Onde vamos, levamos conosco a casa. Pois sendo pele, ela não desgruda de nós. Há pessoas que de tanto se impregnarem da casa, adquirem seu aspecto físico, lembram alguns compartimentos onde mais demoram. É como um fruto que cresce em determinada caixa e cria contornos de seu continente. Daí que se a casa não é um ambiente de harmonia, seu morador transporta esse desajuste, como uma pele acometida de alguma micose. Mesmo que seja um ambiente de conflito, a casa guarda os segredos do convívio. Ela é discreta diante do que vê e do que escuta. Está presente a todos os aconteceres do seu interior, mas não os revela. A memória que dela escapole é por vontade do morador e não dela. Nada que acontece à sua sombra deixa de ficar gravado nas suas retinas de repouso. É preciso pois que o visitante ausculte os seus silêncios, rastrei os seus contornos, prospecte suas fundações para trazer à tona algo da sua história. Daí que são os moradores atuais, e, principalmente, os antigos, aqueles que mais têm o que contar. A casa é pois um ente falante. É uma pele que fala por nós, e que nós a transportamos para onde vamos. Por isso que perder nossa casa é perdermos nossa pele, nossa proteção, nossa pátria, nossa mãe. É perder nossa identidade. Precisamos da casa porque precisamos de nossa pele.

 

27/05/2008.

 

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