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A estética do retorno

Batista de Lima


O nosso passado é uma estação a que queremos chegar, mas que não nos satisfaz em plenitude por sempre haver uma parada um pouco mais depois daquela que alcançarmos. É curiosa essa nossa busca pela infância, que deixa de ser da cronologia pessoal e passa a ser um mergulho em um mundo que parte de uma claridade plena e vai escurecendo à proporção que mergulhamos no desconhecido. De onde viemos é uma incógnita que nos atrai. Mesmo assim parece que precisamos nos fincar fortificados no passado para ingressarmos escudados no desconhecido futuro. Vivemos, pois, diante de dois destinos díspares a palmilhar.

São muitas as formas de navegar em busca das nossas origens. Os historiadores parecem ser as mais curiosas criaturas com grande fôlego a garimpar o que nos antecede. O difícil é saber se tudo que é relatado corresponde à veracidade dos fatos. Isso acontece porque geralmente a história é escrita pelo vencedor das grandes batalhas. Daí existirem heróis que se ergueram sobre histórias que não houve testemunhas para confirmar o relatado. A história não oficial se torna a mais curiosa para os amantes das epopeias. As batalhas são descritas pelos que venceram. Os vencidos não são acreditados, e, muitas vezes, não costumam relatar suas derrotas. Não há orgulho em se contar o fracasso.

A história dos povos é contada com as tintas do orgulho da vitória. Ela cria no cidadão a força do patriotismo. Da mesma forma são as histórias das famílias e dos indivíduos. Vangloriamos-nos do nosso sucesso e da ventura dos mais próximos, omitindo defeitos. Essa prática leva a uma postura individual em que se concretiza o dizer de Fernando Pessoa no seu "Poema em linha reta": "meus amigos são heróis em tudo". São, pois, tantas as virtudes, tantos os sucessos dos amigos, que dá para concluir que individualmente não somos nada.

O retorno se abastece na memória. Essa memória pode estar escrita, gravada ou esculpida, mas pode estar ainda correndo de boca em boca sem se fixar em um registro definitivo. São histórias que ainda persistem no tempo e que, de tanto passarem de geração a geração, vão se robustecendo e criando novos ingredientes episódicos. Essas narrativas instigam nossa imaginação e nos tornam recriadores do que ouvimos. Elas também nos forçam a manter a mente ativa para não esquecermos na hora de recontar. É por isso que se afirma que a escrita veio alienar a mente. Afinal, quando se escreve algo, não é preciso ficar repassando na mente para não esquecer.

Guardamos na mente, principalmente, aquilo que tocou nossa sensibilidade. Por isso queremos o belo na seleção das imagens. Enterramos os mortos enquanto eles estão inteiros. Nossa memória não aceita de bom grado a imagem da decomposição do corpo. A memória fortificou-se a partir do momento em que o homem começou a enterrar seus mortos. Aquela imagem última precisa ser a imagem da vida, mesmo ela não estando mais presente. É por isso que nos dias de hoje os corpos mortos são maquiados para boa imagem no velório e na memória.

Outra faceta do retorno fica por conta da nossa busca por um paraíso perdido. A literatura tem sido pródiga nessa busca do latifúndio memorial. Ela opera uma espécie de reconstrução daquilo que o tempo dilapidou. Proust, Cervantes, Guimarães Rosa e uma infinidade de outros escritores estão sempre em busca da instauração de algo perdido. Basta ver os Romances de 1930, dos nordestinos, para se concluir que eles reconstroem uma paisagem perdida.

Há, na atualidade, uma profusão de memórias pessoais sendo elaboradas. São perfis de personalidades e até de pessoas comuns que têm desenvolvido um modelo de vida inusitado. Talvez isso ocorra por falta de ídolos no momento. Vivemos um momento sem ídolos, sem avatares. Os poucos que surgem são efêmeros e não se cristalizam no tempo. A facilidade com que a indústria cultural cria seus modelos é a mesma com que os destrói. Assim, a memória não tem a que se apegar em um retorno recente. Por isso essa busca de modelos passados que nos sirvam de exemplo.

Assim, pode-se concluir que essa insistente busca por modelos anteriores pode representar uma escassez de pilastras que nos sustentem no presente. O enorme parque de diversões em que estamos inseridos não nos dá opção de escolha. Viramos crianças deslumbradas com tantas opções que não nos fixamos em uma escolha duradoura. Assim a realidade se fragmenta e nos confunde. A "Alegoria da caverna" de Platão se faz presente quando cada dia que passa mais necessitamos recompor essa unidade fragmentada que só pode funcionar quando nossa razão e nossa sensibilidade se derem as mãos numa epifania do ser. FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 20/02/2018.

 

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