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A estrela de Clarice

Batista de Lima




Clarice Lispector morreu em 1977, aos 52 anos. Pouco antes, nesse mesmo ano, lançou "A hora da estrela", seu mais surpreendente livro. Essa sua obra é um verdadeiro auto do desamparo. É que a condição humana de Macabéa, a personagem principal, é tão pungente que a única forma de salvá-la é através da linguagem. Para isso a autora se traveste de narrador com o nome de Rodrigo S. M. E utiliza de todos os recursos possíveis para, através das palavras, salvar a personagem.

Macabéa é alagoana e o único familiar que possui é uma velha tia que a maltrata. Quando a tia morre a moça fica só no mundo. Depois da morte dessa familiar ela vai para o Rio de Janeiro e se emprega como datilógrafa. Aluga um espaço numa pequena república com algumas colegas e passa o tempo ouvindo a Rádio Relógio. Levando uma existência miserável, ela não tem nem certeza se realmente existe. É aí que o texto tenta salvá-la. Toda a linguagem é uma tentativa de fazê-la convencida da existência.

Desde o início da narrativa, algumas tiradas são características da Clarice de outras obras. "Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever". Essas perguntas deixam de ser do texto e passam a pertencer ao leitor. Por que Macabéa, aos dezenove anos, em pleno Rio de Janeiro, é virgem, inupta e não tem certeza se existe? Talvez a resposta esteja logo em seguida: "o que amadurece plenamente pode apodrecer". É tanto que a nordestina murchou ainda verde e não conseguiu amadurecer. Ela é tão inocentemente simplória que irrita.

Por conta dessa simplicidade é que até a história se torna também com enredo simples. "Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e 'gran finale' seguido de silêncio e de chuva caindo". É como se a pequenês da heroína não justificasse um final aberto, ou um tempo que não fosse cronológico. Macabéa não podia merecer algo inovador, ela que era rotina tão veemente que o divertimento era ouvir a Rádio Relógio. Não estava, pois, preparada para receber grande enredo.

Mesmo assim, ao longo da narrativa, vão sendo embutidas reflexões sobre a vida, como forma de preparação para entender a pouquidade desse ser chamado Macabéa, que em alguns momentos chega a ser chamada de Maca. Essa redução do nome e o fato de em nenhum momento aparecer seu nome completo faz parte de sua redução existencial ao quase nada. Revigorar essa criatura, dando-lhe um alento por existir é transfigurá-la, é dar-lhe lampejos de luz.

Uma maneira de transfigurá-la é cercá-la pela linguagem como forma de não se efetivar sua finitude sem resgate. Por isso que está escrito: "Existir não é lógico". "Jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu". "Cada dia é um dia roubado da morte". "Quem se indaga é incompleto". "Pensar é um ato. Sentir é um fato". "A vida é um soco no estômago". "As coisas são sempre vésperas". "Viver é luxo". A linguagem às vezes é poética, outras vezes é prosaica. É, entretanto, a mão estirada para Macabéa, tentando a toda hora salvá-la do não ser nada.

Essa salvação de Macabéa opera-se em duas frentes. Primeiramente ela é resgatada do não ser nada, pela linguagem. Depois há o resgate da personagem pela ontologia. É que a personagem, apesar de miúda, consegue encontrar grandezas nas pequenas coisas. Ela vai à essência de signos que passam despercebidos aos nossos olhos grandes. Macabéa dá a volta total em torno dos seres para os quais só temos o olhar para uma dimensão. Ela vê alma em coisas. Enquanto apenas vemos, ela transvê, vê além do avistar. Ela dá sentido, dá vida ao que achamos que não possui vida.

Macabéa é alagoana e Olímpico de Jesus Moreira Chaves, seu namorado, que nem é Moreira nem Chaves, é um paraibano. Ela datilógrafa, ele metalúrgico. Ambos vivem uma vida miserável. Olímpico, além de levar um crime de morte nos costados, ainda rouba um relógio de um colega de trabalho.

Essas duas criaturas engolidas pela cidade do Rio de Janeiro são dois nordestinos retirantes. Esse estigma sobre personagens de nossa região é um tanto corriqueiro para quem vê de fora o nosso povo. Há uma cultura brasileira de ver o Nordeste como terra de gente sem sobrenome como Macabéa, ou de retirantes espertos que sobrevivem no Sul Maravilha através de expedientes escusos. Não seria essa também a visão de Clarice Lispector?


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 24/05/2016.


 

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