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A escritura abensonhada de Mia Couto

Batista de Lima




Uma das características das narrativas de Mia Couto é a tessitura que ele elabora em seus textos, utilizando mitos e realidades. Às vezes o leitor se envolve numa atmosfera que não vai mais interessar fazer diferença entre o real e o imaginário. O que interessa é o contato com uma mitologia africana riquíssima na sua concepção e ao mesmo tempo ainda existente "in natura" para os olhos do mundo. Esse ilustre moçambicano prospecta, principalmente na tradição oral, as temáticas eletivas das suas narrativas. Não é só isso, no entanto, porque o que mais nos chama a atenção é o tratamento linguístico de que essa temática se reveste.

Há na escritura de Mia Couto uma preocupação em valorizar os falares autóctones. É tanto que, muitas vezes, um glossário é elaborado para que leitores de outros países entendam o significado de termos extraídos de dialetos tradicionais da região de Moçambique, na qual o escritor nasceu, no ano de 1955.

Esse apelo para o falar local não é apenas criação do autor, mas uma prática da população moçambicana que considera a libertação de Portugual não apenas política, mas também linguística. As mães ensinam às crianças os dialetos locais e isso leva-nos à conclusão de que a autonomia daquele povo é uma construção permanente, a qual não pode prescindir das novas gerações.

Há na linguagem desse autor abensonhado pelo talento um jogo dialético em que as palavras se põem contradizendo suas feições dicionarizadas. Um permanente prefixo "des" estabelece uma ressignificação da palavra com ela se voltando contra si própria. "Desabandonado" termina por não ser abandonado. "Desbengalado" é estar sem bengala, é a libertação do cego. "Desalvoroçava" é contrário a "alvoroçava", mas o primeiro termo precisa do segundo para lhe impor significação contrária. "Desvistado" precisa de "vista" para negar a visão.

Chamar um cego de desvisto é fugir da linguagem trivial e criar nova forma de dizer. É aí, no tratamento da linguagem, que esse cultivador de "Um rio chamado tempo e de uma casa chamada terra" se estabelece.

Biólogo por formação, Mia Couto conhece a terra tanto real como mítica. Defende a preservação das praias como forma de salvar o mar. Tem olhar crítico para as contradições entre a sua Maputo, capital moçambicana em processo de modernização, e a pouca distância dali a atrasada e esquecida Inhaca, também uma grande cidade. Sua visão de mundo é pós-moderna e está a serviço do engrandecimento de sua terra e da valorização dos falares lusófonos. Para ele, é como reconhece Saramago, "não há uma Língua Portuguesa, há línguas em Português". E é dessa língua multifacetada que ele, revirando-a, traz à tona potenciais novos, imagens tão inovadoras que o tornam hoje um dos mais criativos escritores da Língua Portuguesa.

Como ninguém é totalmente original, Mia tem lá seus momentos intertextuais. Quando o encontramos navegando o fantástico, denotamos algumas digitais oriundas de suas leituras de Gabriel García Márquez. Verificamos que no solo africano latejam possibilidades de frutificação de uma Macondo a cada palmo. Já na sua forma de extirpar as palavras para de suas entranhas formular novos vocábulos, sentimos o pulsar roseano do "Grande Sertão: Veredas". Nesse mesmo caminho podemos encontrar o suor da terra pantaneira, respingando orvalhos nos signos de sua criação, à moda Manoel de Barros. Palavras que ambos tocam, se sujam das terras em que pisam.

Fiel ao que afirma Octavio Paz, no seu "O arco e a lira", de que "uma nação é um feito linguístico", Mia busca na boca do povo moçambicano o léxico telúrico com que compõe seus escritos. Sabe ele que os limites de uma nação vão até aonde alcança o falar de sua língua.

Daí que sua prosa poética e seus poemas são renovadores de uma língua que mescla o velho português ainda com sabor dominante com os dialetos nativos até hoje bandeirando libertação. Portanto, desde 1983, quando publicou seu primeiro livro, uma coletânea de poemas com o título de "Raiz de orvalho", Mia Couto está empenhado na construção de uma cidadania moçambicana. Duas vertentes de sua busca pelos personagens que marcam sua Moçambique são os idosos, com profundas cicatrizes da guerra colonial pela independência e da guerra interna logo após a libertação, e as crianças, como depositário da esperança da construção nacional.

São essas crianças, caminhando um solo minado, que pungem nas suas narrativas. Como dar-lhes esperança diante da miséria, da violência e do analfabetismo? Como indicar-lhes caminho sobre um chão ainda armado e mutilador? Contar-lhes histórias é uma forma de preveni-los contra perigos, é confortar-lhes a existência. É evitar-lhes o mesmo destino do boi Mabata bata que espatifiou-se na explosão de uma mina.

Mia Couto estará aqui entre nós, não para trazer-nos saberes na voz, mas para nos mostrar novos sabores desses saberes. "Recriar o Pensamento, Mudar a Realidade" é o tema que nos traz. Graças ao emprenho da Universidade de Fortaleza, através de sua Vice-Reitoria de Pós-Graduação, em parceria com o EGES, Escritório de Gestão, Empreendedorismo e Sustentabilidade, vai ser possível a comunidade universitária e seus leitores, encontrá-lo no Teatro Celina Queiroz, nos dias 29 e 30 próximos. Na oportunidade será possível dialogar sobre conhecimento moderno, literatura, sustentabilidade, colonialismo cultural e as "Histórias abensonhadas" de uma "Terra sonâmbula", d'"Amenina sem palavra", no seu despertar para o futuro, "Nas águas do tempo", tecidas de saberes e sabores esperançosos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/06/2017.


 

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