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A danada da cachaça

Batista de Lima

As pessoas costumam dar vários nomes ou alcunhas àquilo de que querem diminuir o potencial ou diluir más influências. Deus aparece quase sempre apenas com o mesmo nome. O demônio, no entanto, possui uma variedade enorme de apelidos. Em "Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa se utiliza de mais de trinta nomes diferentes para atenuar o poderio maligno do demo. Com tantas formas de nominá-lo, Satanás torna-se menos maligno ao longo da narrativa desse escritor.

O mesmo acontece quando se quer dar nomes a uma pessoa diferente das demais em um determinado grupo social. Colocando-lhe vários apelidos é uma forma de socializá-lo.

Tínhamos um colega no Seminário Sagrada Família que era muito feio, tinha uma letra garranchal, tirava notas baixas e era preguiçoso. Começamos a lhe aplicar apelidos, e foram tantos que ele terminou por se tornar uma pessoa querida de todos, uma figura folclórica que ainda hoje é lembrada por todos que por lá passaram. Chegou uma vez a possuir tantas alcunhas que um colega, pesquisando, descobriu que o coitado possuía sessenta e seis apelidos, daí lhe deram o último nome: "sessenta e seis".

Com relação às bebidas, não há uma que possua mais apelidos que a cachaça. A cordelista Maria Matilde Mariano elaborou uma pesquisa que foi transformada em cordel muito bem elaborado, em que aparecem 444 nomes diferentes para a cachaça. Esses nomes estão colocados em ordem alfabética em estrofes de sete versos todos em redondinha maior, com rimas ricas. É um primor de poema popular e, ao mesmo tempo, resultado de uma pesquisa minuciosa sobre a aguardente. Há nomes que vêm com uma palavra e até com frase inteira.

Geralmente, para cada letra do alfabeto há duas estrofes com nomes variados. Não encontrei "podre", "jeropiga", "bicada", "narigada", "lapada" e "cana". Entretanto, a pesquisadora foi buscar, não sei onde, nomes como "arruaceira, balduína, corrompida, depravada, espoleta, fedegosa, generosa, indigna, jabiraca, lambada, meizinha, orisa, sonolenta e veterana".

O nome mais bonito que encontrei no cordel foi "cascarobil", o mais simples, mas talvez um dos mais usados é "uma", sempre em frases como: "vamos tomar uma?"

Os nomes compostos que a autora encontrou são muitos, mas é bom citar: "bate-papo, bota-fora, coça-coça, chapéu-de-couro, escalda-pé, fim-de-semana, lero-lero, lava-pé, noz-vômica, puxa-faca, pega-pega, pisca-pisca, pé-de-cinza, quebra-jejum, queima-galo, queima-dente, queima-roupa, queima-língua, quebra-costela, rabo-de-galo, reza-forte, sangue-de-tigre, salva-vida, sai-do-meio, salga-galo, serve-para-tudo, tomara-que-caia e vai-ou-racha".

Muitos desses nomes que aparecem com hífen dele talvez nem precisem, segundo a gramática, principalmente quando a Reforma Ortográfica for finalmente oficializada. Mas o que está aqui é a fidelidade ao cordel de Matilde Mariano.

No cordel não há referência às fontes de pesquisa a que a autora recorreu. Entretanto, ela deve ter lido livros de folcloristas ou ter procurado nomes entre outros cordéis. Importante é se constatar que foi uma paciente coleta de nomes.

Também há deles que são verdadeiras definições de seu efeito ou referência sutil à classe dos principais consumidores. É o caso de: "acaba tosse, alerta espírito, a que matou o guarda, acaba festa, amansa sogra, acorda anjo, bebida de pobre, bate um negócio e briga de vizinho". Leonardo Mota inventou "água que passarinho não bebe", e pegou entre o povo até hoje.

Francisco Bezerra, ou Bezerrinha, no seu livro "A branca noite do fim do mundo", utiliza por mais de uma vez o nome "calibrina" para dar apelido à cachaça. No caso de Maria Matilde, há nomes até que determinam a boa ou má qualidade dessa bebida. Assim, aparecem: "xaropada, vomitório, uísque de pobre, tingui, treco, soneira, suadeira, roedeira, rabugenta, querosene, purgante, pinto molhado, privada, misturada, mungango e laxante".

Há até nome clássico como "orisa" que no latim significa "arroz". Pode ser que exista uma cachaça feita de arroz, já que nem toda cachaça é feita de cana. Existe feita até de banana, como a "Parati", preferida pelo grande escritor Lima Barreto.

Além de Lima Barreto, outro escritor que apreciava bastante a cachaça era Graciliano Ramos. É até difícil encontrar escritor que não aprecie alguma bebida. No caso dos nordestinos, há uma preferência pela cachaça que é produto da própria região. Talvez venha deles a origem de nomes bem curiosos adquiridos por essa bebida.

É o caso de "atebrina, beca, birusca, bambidula, cafiascarape, carioba, fragosa, frictol, girita, hidrolitol, intanha, janduína, jeritataca, manricada, preacada, quizila, taridinha, truniana e xavielada". São nomes da mais pura criação em pé de balcão de bodega. Afinal, depois de umas e outras, o sujeito principia a criar histórias e criar também palavras. Mérito, entretanto, para Maria Matilde Mariano, que foi a campo captar tantos nomes para essa água que passarinho não bebe de tão ardente que se apresenta.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 01/09/15.


 

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