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A culinária cangaceira

Batista de Lima




A vida nômade dos cangaceiros levava a uma culinária específica de acordo com as características de cada localidade em que se situava. Também influenciavam as estações do ano, as secas e as ajudas dos coiteiros. Era uma culinária própria do agreste. Entre as três zonas que compõem a terra nordestina, litoral, zona da mata e agreste, era nesta em que mais se adaptava o cangaço. A caatinga, de vegetação rala, era propícia para o deslocamento dos bandos que podiam, facilmente, ir e vir, a pé ou a cavalo. Nesses deslocamentos havia as dificuldades de transporte de grandes quantidades de víveres que não fossem perecíveis.

A farinha de mandioca era muito presente nessa culinária. Transportada em alimárias, quando o bando cavalgava, nos sacos, surrões ou alforges, crescia em quantidade. Quando a pé, os bornais se enchiam e o peso aumentava para o cangaceiro que ainda transportava armas e outros objetos. Entretanto a farinha era indispensável para a farofa, o beiju, a tapioca e para misturar com a rapadura. Além disso, a paçoca, tendo por base a carne seca, era ingrediente de alto poder nutritivo e saboroso, principalmente quando acrescida de frutos da região, em especial a banana.

Nas épocas de estiagem e grandes secas, tipo 1877, 1900, 1915 e 1932, a falta da água era fator de criatividade para a sobrevivência. Até para cozinhar era preciso economizar o líquido precioso. Por isso que o feijão e o arroz se deram as mãos nessa economia. Primeiro cozinhava-se o feijão e depois com seu caldo levava-se o arroz à panela. De tanto se utilizar o caldo do feijão para o cozinhamento do arroz, surgiu o baião de dois, tão utilizado nos dias de hoje na culinária nordestina. Foi portanto a escassez da água que levou ao surgimento desse nosso precioso prato.

Outro componente importante nessa culinária era o sal. A utilização do sal se revestia de uma certa dificuldade por conta da distância entre as fontes de produção, que ficavam no litoral, e seu uso nos distantes sertões. Essa dificuldade vinha desde tempos antigos, o que tornava esse produto de difícil aquisição por conta do preço que às vezes exorbitava. Prova da supervalorização desse produto é que muitas vezes o sal era utilizado como moeda de troca, chegando a servir para pagar o serviço de trabalhadores. Surgiu assim a palavra "salário", ainda utilizada hoje, e que é derivada de "sal".

Na tradição oral do sertão, conta-se que Lampião e seu bando, chegando à casa de uma velhinha, foi solicitado que ela fizesse almoço para os cangaceiros. A coitada da cozinheira, na sua aflição de atender aos fascínoras, esqueceu de colocar sal na comida. Um cangaceiro reclamou, e depois da refeição, o chefe do bando, pediu àquela senhora que trouxesse uma porção de sal. Depois obrigou o cangaceiro reclamador a engolir todo aquele sal, o que o deixou quase às portas da morte. Esse episódio mudou de enredo exatamente quando li "Os Brilhantes", de Rodolfo Teófilo.

"Os Brilhantes" foi publicado em 1895, antes do nascimento de Lampião. Nesse livro de Rodolfo Teófilo, consta que Jesuíno Brilhante com seus oito cabras foi recebido na casa de um fazendeiro que lhe ofereceu uma lauta refeição. A comida, no entanto, estava insossa, o que foi de pronto reclamado pelo cangaceiro Cobra Verde. Isso foi o bastante para que ao fim do acepipe, Jesuíno pedisse uma porção de sal e obrigasse Cobra Verde a engolir todinho, o que quase o levou à morte. Esse episódio foi um dos que levaram esse cangaceiro a trair seu chefe posteriormente.

Além de alimentos não perecíveis, que eram transportados pelos cangaceiros, havia os produtos da caça. Eram caças aprisionadas por armadilhas para evitar tiros que chamariam a atenção das volantes. Também em época de bom inverno, havia a pesca nos açudes por onde passavam. Isso não impedia de vez por outra irem às pequenas cidades, vilas ou povoados e fazerem suas feiras sem serem descobertos. Eram ocasiões em que outros bens de consumo eram adquiridos, como perfumes, bebidas e tecidos. Além disso eram ocasiões de captar notícias do deslocamento da polícia.

Apesar de tudo isso, a grande fonte de abastecimento do cangaço estava nos saques que eram realizados nas pequenas cidades e nos comboieiros que transportavam mercadorias pelos caminhos. As fazendas que eram atacadas também eram fonte de abastecimento, além dos coiteiros que não mediam esforços para abastecer os bandos. Toda essa movimentação era feita por caminhos, pelas ribeiras porque os cangaceiros não gostavam das estradas. Eles tinham horror a caminhões e principalmente ao trem. É tanto que alguns previam que era essa modernidade, com a abertura de estradas para transportes motorizados, que iria acabar com o cangaço.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 23/05/2017.


 

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