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A cronista Vicência Jaguaribe


Batista de Lima


A crônica fotografa o cotidiano através da palavra. Ela faz com que homens e palavras sangrem pela mesma ferida. Essa sangria é resultante do esforço de segurar o tempo no seu desespero de passar e passar e ainda levando a gente de roldão.

É por isso que a memória é o melhor freio para sustar essa desenfreada e vertiginosa correria do Cronos nos arrastando nos seus calcanhares. Portanto há cronistas que se deixam arrastar pelos encantos desse pai de Zeus, mas há outros que lhe freiam a corrida, mostrando-lhe as delícias do que se foi.

É por isso que ao se lerem as crônicas de Vicência Jaguaribe nota-se o encabrestamento do marido de Gaia. Pois fica evidenciada a preocupação da autora em revirar suas memórias como uma forma de retorno a um paraíso perdido. Essa sua coletânea de título "Caleidoscópio", a partir da capa, já pressupõe uma rédea para que o tempo não desembeste por falta de freio. Sua escrita é um basta. Esse freio se alicerça nas lembranças da infância sua, das pessoas e das coisas. Leia-se aqui como infância, os alumbramentos que em cada um não se extinguem.

Sua forma de humanizar a corrosão que o tempo impõe aos elementos textuais começa com o humor. Há um sutil humor na escrita de Vicência. Os casos e causos narrados não devem ter acontecido como estão descritos, mas o fato de terem sido narrados, e da forma que o foram, passam a ter acontecido. Isso porque na sua forma de narrar há uma preocupação com o aprimoramento da linguagem. Essa sua preocupação linguística decorre do seu exercício diário na docência do Curso de Letras, da Universidade Estadual do Ceará, em que lecionou por vários anos.

Aposentando-se dessa sua função docente, Vicência ousou abrir sua gaveta de lembranças. Toda uma fortuna memorial transcendeu do esvaziamento do que foi aberto.

Afinal, uma gaveta fechada está sempre cheia, mesmo nada contendo. Por outro lado, uma gaveta aberta, mesmo estando lotada de quinquilharias, está vazia para nossa imaginação. Pois a cronista esvaziou sua gaveta com o devido cuidado de transportar seu conteúdo para as folhas brancas que estavam ao sopé de si.

Nessa gaveta de memórias, cabe até sua Jaguaruana querida, cidade do interior cearense em que nasceu e se criou. Dali as reminiscências são pescadas à margem do rio Jaguaribe.

Personagens vão entrando em cena com seus caracteres inusitados. Sua tia Adélia bem caracteriza os costumes antigos da cidadezinha. Filha de Maria e assediada por um pretendente termina por o amor não dar certo. Nessa crônica entram ingredientes religiosos comuns nas pequenas cidades interioranas, o que comprova que sua Jaguaruana está em muitos outros lugares.

As crônicas, no entanto, não ficam todas centradas em sua cidade natal. Há muitas que já ocupam como cenário a cidade de Fortaleza. Nesse caso os costumes apresentados são outros. O progresso e a evolução dos tempos transparecem no modernismo exagerado de algumas situações. Mas é importante verificar que mesmo nesse outro cenário, há uma forma terna de tratar os personagens e seus modos de agir. Essa ternura traz o alívio até em situações pungentes que possam surgir.

A ternura como modo de tratamento dos personagens está muito caracterizada em "A gravidez de Minnie". A cachorrinha personifica-se com modos de gente grande e conquista o leitor com sua história de vida. A crônica termina com a menina moça canina se tornando uma senhora mãe de família como se gente fosse. Essa humanização da pequena cachorra acontece no transcorrer de duas páginas em que a sensibilidade de Vicência Jaguaribe dita as regras da transformação.

Finalmente, diante do volume de 31 crônicas, fica difícil para o analista falar de cada uma. Preferível então é abordar sobre as que mais chamam a atenção. Por isso que considero a culminância, na coletânea, a crônica "O mundo coberto de caixas de livros".

Nela aparece a revelação da escritora ao confessar que começou a escrever aos 60 anos, praticamente quando aposentou-se como professora universitária. Acontece no entanto o lado pungente da função de escritor de província como todos nós vítimas de um colonialismo cultural em que as livrarias da cidade se recusam a expor nossos livros à venda. Assim, nós e a autora acumulamos livros e mais livros em nossas casas como filhos bastardos à procura de um pai, digo, leitor.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 14/10/14.


 

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