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  • Foto do escritorBatista de Lima

A crise da representação

Batista de Lima



A palavra sempre foi o palco principal da representação. As coisas nos enviavam as palavras para essa grande encenação que é a vida. Quanto mais palavras em cena, mais vida para a existência que cultivamos, mais representação. No entanto, com tanta utilização da palavra e com tantas formas de substituí-la, essa palavra foi ficando desgastada a tal ponto que já houve até quem prognosticasse sua próxima morte. Ora, o mundo é feito de palavras. Acabar a palavra seria acabar o mundo. Acontece que substituir a palavra por algo que a represente, é o mesmo que substituir a coisa pela palavra. O surgimento de uma, não implica a morte da outra. Substituir a palavra por algo que tenha sua mesma função é, pois, uma forma de manter a máquina do mundo no seu funcionamento pleno. A questão do enfraquecimento da palavra passa também pelo viés de sua aquisição. Mercadoria de fácil transação ela democratiza-se na distribuição e se retrai na utilização. A falência do sistema educacional está exatamente nessa farta distribuição de possibilidades verbais para um número mínimo de usuários. De que vale as coisas chegarem até mim se não posso manipulá-las? Como se diz vulgarmente, como posso viver permanentemente comendo com os olhos e lambendo com a testa. O mundo verbal que a escola instiga se torna um simulacro porque apenas privilegiados podem colocá-lo em funcionamento para benefício próprio. À classe, é servido um prato verbal que fora dela poucos podem saboreá-lo. Aí vem a frustração diante da palavra. A violência é a resposta a essa frustração. É a palavra exercendo uma fala para a qual o educador não atentou quando pensou a língua como sistema fechado com regras tão severas quanto os códigos sociais. Não viu, o professor, que a profusão de encantos, que disseminou precisa de uma resposta que se não for dada ao usuário, por ele será produzida. É essa produção feita por quem ficou fora do palco, mas que possui também seus atores, que põe em cena uma linguagem à margem, que mata a palavra tradicional na criação de atalhos para também chegar ao final da corrida da vida. O que se tem feito é distribuir em sala de aula os temperos de uma ceia para a qual poucos são convidados. A palavra utilizada nessa fantasia só tende a perder sua credibilidade. Foi aí, no auge dessa indigência, que o garoto possuidor de todo um aparato verbal praticamente inútil, resolveu subverter esse patrimônio estagnado, contradizendo o que as palavras diziam. Começou por travesti-las de outros utilizações e descobriu que ainda havia uma esperança para si próprio e para a palavra, era a arte. A arte é a criação de um novo palco, de um novo mundo, onde minha palavra cansada e inútil nos palcos da vida, pode receber um novo papel no qual vou colocá-la. Antes de apunhalar meu circunstante na rua, ainda tenho a possibilidade de apunhalar as palavras que me impuseram como definitivas, mas que eu provarei que definitivas não são. Ora, se o tempo se põe a corroer a palavra feito maresia em esquadria, cabe ao artista restaurar essas instalações depauperadas. Mas não é só a restauração que consegue a permanência verbal, é também a recriação, é o desmanchar das estruturas viciadas para delas se elaborar uma nova peça. Só o fazer artístico possui esse dom de devastar para construir. A estrutura desmontada é o primeiro passo para a nova construção. Isso nos leva a concluir que toda rebeldia é uma forma de linguagem. Que tudo começa com a palavra sendo esvasiada da sua significação. É o desarmar da palavra para armá-la com munição nova e poder de fogo muito maior. A alienação se aloja em palavras postas em sossego. É a arte que tem o poder de manter viva a palavra. Arte é permanência por ser renovação. É a matéria prima da criação. Ela não se dá no enclausuramento da frase, nem no aprisionamento da sintaxe, pois explode se regrada. Mesmo assim é a ponte que liga as duas margens de um homem. Vai do real ao simbólico, mostrando que no outro lado podem estar as respostas que o lado de cá não fornece. Daí que, observando-se a perspectiva humana dentro das contingências do semi-árido como o Nordeste, o desgaste da palavra traz como resposta alguma forma de rebeldia. O cangaço foi um discurso adubado de sangue, mas foi uma forma de explosão de linguagem daqueles que não estavam inclusos na sintaxe da vez. Mas o Projeto Casa Grande, de Alemberg de Quindins, em nova Olinda também é um discurso de excluídos. A arte de Nova Olinda e o cangaço que em outras épocas explodiu no seu entorno são linguagens de muitos pontos em comum. Sangue no chão, tintas na tela e a musicalidade que lhes é comum sangram pela mesma ferida. Afinal, de tanto se perpetuar uma exclusão, termina-se por criar uma inclusão. O Cariri terminou por se tornar palco de uma encenação em que a palavra tomou uma nova significação. Canteiro de mitos, não fora a palavra armada, não seria o palco principal da mitologia da nação. Padre Cícero, Patativa, Luiz Gonzaga, Beato Zé Lourenço, Frei Damião, Lampião, Alemberg de Quindins, Maria de Araújo e tantos outros atores deram à palavra um caminho novo, quebrando uma sintaxe viciada e alienadora que perdura ainda em muitas outras partes do Nordeste. Uma forma de desalienar um aprendiz é introduzi-lo no mundo dos signos. E o verbo ideal para marcar esse ritual é ´insignare´ que depois tornou-se ´ensinar´. Ensinar é fazer com que o aprendiz abra veredas do sertão do desconhecimento. É possibilitar a conclusão de uma ponte entre as duas margens do rio do saber. Uma é dada ao aprendiz, a outra ele precisa construir. O material para sua construção é a palavra cimentada de inovação, é a argamaça da ousadia. Se velhos materiais forem utilizados, numa estrutura de modelo também conhecido, nada de novo vai surgir, a não ser o desgaste de uma representação. O momento é de resgate de tudo o que for representação. Mas esse salvamento precisa da mão estirada da metáfora. As palavras estão cansadas de terem sempre a mesma utilidade, o mesmo caminho orientado pelo pensamento. Chegou a hora de mais uma libertação, e esse movimento começa pelas suas raízes, pela sua estrutura profunda, lá onde a metáfora faz seu ninho. E é lá onde as possibilidades são infinitas. Se a superfície já cansou meu olhar, tenho como ver o subterrâneo. É lá onde a palavra guarda suas raízes. É na raiz onde o radicalismo de uma nova concepção da palavra traz a salvação para esse mundo de tanta representação viciada.

 

28/04/2009.

 

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