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A corporeidade em tempos de rastreamentos

Batista de Lima


A grande batalha que se trava no indivíduo se desenvolve geralmente nos limites entre a mente e o corpo. Os dois concluem que "mens sana in corpore sano". O culto da mente passa pelo burilamento do corpo, para que a fala do indivíduo seja um ajustamento de pele e abismo. Daí que Lacan fala em metonímia e metáfora, e Chomsky nomeia de estrutura de superfície e estrutura profunda, para chegarem ao adro onde o ser humano se digladia consigo próprio para tentar auscultar até onde vai essa verticalidade que o corpo aponta.

Por isso que esta coletânea de artigos, intitulada "Olhares de saúde coletiva sobre o corpo", instiga o leitor a se olhar primeiro como ser no mundo, ícone e símbolo. Ícone porque, mesmo ser de comunicação, a imagem primeira, significante, para o outro é o corpo. Depois porque essa ilha-corpo aparentemente solitária no oceano da vida, instaura, na sua base, um continente social com seus conteúdos semelhantes. Nenhuma ilha boia, ela é a ponta de um continente que lhe dá apoio e que lhe empresta o mesmo DNA dos subterrâneos. Como a ilha, também o homem não boia solitário.

Esse homem como célula do corpo social aliena-se aos sistemas de comportamentos como, por exemplo, ao sistema da moda. O corpo social atua no corpo particular. A saúde social atua na saúde individual. Acontece que de tanto seguir o que o modismo determina, o indivíduo se vê enquadrado na ditadura de fora para dentro. Sua fala se compromete porque a tensão que se estabelece entre indivíduo e sociedade abranda-se tanto que a fala passa a ser do grupo. Por isso que a Psicologia Social, a cada dia, vai se tornando mais necessária. A ditadura do corpo sarado, como símbolo do saudável, incorpora nas mentes a ideia de que a morte e suas preliminares sejam abjeções a serem escondidas.

A modernidade tem provocado um distanciamento entre o Eros e o Tânatos. O erotismo se estampa na vida cotidiana. A morte se esconde. Não há mais a morte convivida. O medo da morte é uma falta de saúde. O mundo da UTI elimina os rituais em torno da morte. Daí que o domínio do corpo é como que um prolongamento do domínio do grupo social. E o que faz essa intermediação é a palavra. A palavra como criação social nomeia arbitrariamente. De forma que a tentativa de unificar conceitos impõe ao corpo padrões às vezes alheios à individualidade. Por isso que cirurgias de burilamento corporal são mecanismos de ingresso no corpo-mundo globalizado e ditador.

O que resulta dessa luta entre Apolo e Dionisius, arbitrada pelo corpo social, é o privilégio da forma como maneira de padronização de um sistema de signos. O signo linguístico vai cada vez mais dando lugar ao império dos ícones já que a imagem, como elemento mais sensável, invade com facilidade os nossos sentidos. É aí que o sentido privilegiado é representado pelos olhos, que terminam por escamotear a subjetividade. Esse livro olha através do corpo os contornos da coletividade. Para isso sua linguagem é científica, oriunda de um grupo de pesquisadores zelosos.

A pergunta que nos incomoda é centrada na dificuldade que encontramos de, utilizando esse corpus linguístico, analisarmos errâncias. Por isso que é instigante sua leitura. Afinal, um texto vale pelo que perturba, pelo que reproduz de leituras, pelas interrogações que instaura. No caso em pauta, fica-se imaginando conexões entre metonímias e metáforas. Na contemporaneidade precisa-se pensar o corpo como ícone da liberdade pessoal, um plantio na estrutura de superfície para frutificar na estrutura profunda. Uma mente pode-se trabalhar de fora para dentro.

Uma mente pode ser também trabalhada de dentro para fora. As lembranças, a memória e a tradição borbulham por mais que o corpo seja siliconizado e hormonizado. O mito do embelezamento corporal se enraíza na tradição histórica. Esse embelezamento é uma tentativa de transfiguração. A questão é saber até onde vai o emprenho do corpo original diante das transformações de superfície. Como fica a sustentabilidade da pele no confronto com o bisturi.

Como a mente se comporta diante dessa escuta oriunda do corpo? A psicanálise procura resolver a questão, auscultando na coletividade como um corpo que também ela representa. Um dos melhores textos deste livro é o que trata desse rastreamento.

Outra vertente que alguns desses estudiosos utilizaram na confecção desses textos foi através da coletividade esculpirem os contornos do corpo. Para isso foi necessário identificar um código social de comportamentos que no confronto com a fala que cada indivíduo vai erigindo no seu estar no mundo, abre uma fissura entre o particular e o coletivo. Por isso que na leitura dos escritos aqui apresentados notam-se caminhos opostos que se tocam. Afinal um sociólogo que prospecta sistemas e códigos faz um caminho diferenciado de um psicanalista que escava falas e símbolos acidentais.

Por fim, verifica-se que o mérito maior desses "Olhares da saúde coletiva sobre o corpo" está na diversidade de reflexões elaboradas sobre o tema central, feitas por pesquisadores de áreas diversas. Acontece que as conclusões desses trabalhos, postas em confronto, apresentam pontos de convergência, o que patenteiam o profícuo resultado da transdisciplinaridade no ambiente universitário. A saúde coletiva e suas influências sobre o corpo, seus olhares e suas leituras interessam aos pesquisadores das mais diversas áreas do humanismo. Afinal, não há nada mais preocupante para o homem do que o próprio homem.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 10/07/12.


 

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