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  • Foto do escritorBatista de Lima

A casa e a pele

Batista de Lima


Não é possível que depois de tantas horas de voo, e em um país diferente, ela estivesse lá, com todos os seus contornos, com suas portas e janelas abertas em sorriso de boas vindas. Estava com o alpendre, com o fogo aceso, a cinza do borralho, o pote, a rede e a mesa interrogativa.

Quando cheguei bem longe daqui, lá estava a casa. Não uma casa qualquer, mas a casa onde nasci e me criei. Era como se ela tivesse viajado na minha frente. Era como se ela tivesse ido bem antes de mim e tivesse se instalado exatamente por onde eu passasse. E o pior é que ela não fora só, estava lá com tudo que me compõe.

Não é possível que depois de tantas horas de voo, e em um país diferente, ela estivesse lá, com todos os seus contornos, com suas portas e janelas abertas em sorriso de boas vindas. Estava com o alpendre, com o fogo aceso, a cinza do borralho, o pote, a rede e a mesa interrogativa.

Era como se eu me vestisse da casa, como uma pele que não se desgruda da gente. Vai para onde vamos. Ela se põe à mesa, vagueia pelas ruas e olha vitrines. Fecha-se em portas quando o frio aumenta, quando a chuva cai. Dá até para sentir o cheiro da carne fresca que ferve no fogo, em um silêncio tão grande que o carneiro ainda pasta no campo. Dá para sentir o cheiro dos lençóis, principalmente do segundo, daquele que nossa mãe distribuía quando a chuva chiava no telhado.

Não dá para esconder os gestos, não dá para mudar a posição das cadeiras na mesa. Elas não saem do lugar. Na testa, meu pai, e o olhar para o sul, onde a serra se espreguiça e entra pela porta para participar da ceia. Eu, do seu lado esquerdo, onde a outra porta dá para o poente e mostra serras longe que em vez de virem me oferecem distâncias.

É impressionante que aqui, neste país distante, todo esse panorama esteja, com o aspecto de que sempre estivesse estado. Os transeuntes, e são tantos, são vizinhos, primos, tios e tias.

Não dá para me esconder de mim. Até parece que estou em toda parte, montado nos meus teréns. Quando tomei essa bebida quente para abrandar tanto frio, era a cachacinha que sempre dormita na garrafa posta debaixo do pote, enfeitando a cantareira . Interessante é que até um pássaro passou pela minha sacada, e trouxe, nas asas, notícias de pé de serra, e trouxe, no voo, suas lições de não parar. Mas impressionou-me muito o atrevimento de uma flor que vi na praça. Era a mesma dos quintais de eu menino.

Não há como desperdiçar essa casa que carregamos. Se o corpo está curvo, a cabeça chata e o pescoço inexistente, é o peso dessa casa que nos enfia por terra, com lições de ficar. E o pior é que ela não vem só. Toda uma nação lhe acompanha. Os bens móveis e imóveis lhe respaldam os passos. A vaca preta, o cachorro caçador, o açude, o engenho, tudo vem em procissão lhe fazendo companhia. Dá para distinguir até as pessoas dos retratos, o amarelo do tempo que não para de passar.

Dá para ver as outras casas que lhe ficam próximas, todas viradas para o nascente, na colheita das manhãs. Nada se desperdiça dessa paisagem que carrego aos ombros. Não são casas, são nações que se deslocam mesmo com raízes tão profundas. Até o riacho vem junto, trazendo aquela tarde de abril em que a enchente desceu com melancias e subiu com peixes prenhes.

Não, não dá para se desvestir de tanto barro. Não dá para não ouvir tantas novenas, ladainhas e benditos. Nesse dilúvio de estar vivo, temos que arcar com esse peso do mundo sobre os ombros. Não dá para não ver esses dedos tristes, esses pés desconfiados, essa mãos que não sei onde pô-las.

Até as topadas acompanham sem cerimônia, impressas nas unhas quebradas dos pés que procuram pedras no asfalto. Também incomoda essa timidez feito peia nas pernas e venda nos olhos. Afinal, até parece que todos olham esse caminhar que nunca aprendeu a leveza dos passos.

Até nas vitrines as coisas me olham com o riso safado dos citadinos. E é porque não sabem que perco meus braços quando me ponho à rua.

Quando vi guloseimas vitrinadas, saboreei a rapa da gamela da infância. O doce quente e sinestésico fundou o engenho entre esses prédios sem pudor. Deu até para sentir o cheiro do mel queimado em visita às narinas. Alfinins se ergueram brancos e a cana piojota estalou nas moendas. Toda uma moagem se formou ao sopé de mim. Meu avô contou um balaio de histórias de botija, minha avó tapiocou o fogão a lenha. E esse frio cortante que me decepa os passos é o aracati que chega sem pedir licença.

Não, não dá para ser só, a dor que aqui lateja é a mesma que lateja lá. O gado que eu tangia lá é o mesmo que aqui se põe de calça, camisa e vestido, pedindo para ser tangido. O corredor de duas cercas onde as vacas se espremiam, aqui é feito de cimento e aço onde a multidão perde seus passos.

Triste sina essa de cismar o mundo. Por que tanto chão para tão poucos passos? Por que tantos cabelos, pedindo cafunés? Ainda bem que ser poeta é ser ventre, e que os pés são feitos para decifrar as terras. Por isso vivo lutando para lá chegar.


jbatista@unifor.br

17/08/10.

 

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