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A carta do irmão do Henfil

Atualizado: 11 de mai. de 2020

Batista de Lima



Uma carta, dentro da sua linha lírica de se estruturar, pode ser o testemunho catártico do missivista. Escritores vários se revelaram muito mais em suas cartas aos amigos íntimos do que nas entrevistas a jornalistas perscrutadores. E quando se escreve para a pessoa amada, principalmente em momento terminal, a correspondência punge e sangra. É o caso de ´Uma carta para Maria´, escrita por Herbert de Souza (o Betinho), para sua mulher Maria e levada a público, um ano após sua morte. Ele começa dizendo: ´Este texto é para Maria ler depois de minha morte´. Essa morte de que ele fala não estava longe, tendo em vista que sendo soropositivo, por ser hemofílico, já havia perdido, nas mesmas circunstâncias, os irmãos Henfil e Chico. Logo em seguida ele afirma que todo o escrito é uma declaração de amor. Foi uma carta escrita sem pressa, pois a ela, ele sempre retornava, como se escrever naquele momento fosse uma forma de estar vivo. Mesmo assim, depois de longas reflexões e retornos às suas linhas, ele a concluiu em janeiro de 1997, em Itatiaia. A demora em escrever essa carta também decorre do fato de ser elaborada com todos os cuidados possíveis, por ser dirigida à pessoa amada. Amar é ter cuidado com a pessoa amada. Daí que Betinho parte do momento em que os dois se conheceram, em 1970, nas reuniões da Ação Popular (AP). Era um momento tão amedrontador, que as coisas do amor eram postas em segundo plano. Betinho não se aventurou logo na conquista de Maria. Primeiro sondou, depois iniciou com ela o namoro, num ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo, ocasião em que trocaram o primeiro beijo. Ali teve início uma relação que durou em torno de 27 anos. Apesar da forte ideologia, o amor do casal, no entanto, era mais forte. Tão forte a ponto de resistir à clandestinidade que os conduziu a residir em um casebre só com um quarto e uma cozinha. Mas foi nesse cenário em que mais se amaram. Como ficou escrito, era ´medo de dia, amor à noite´. Aliás, paradoxalmente, essa geração de Betinho e Maria fez na cama, o que não podia fazer na rua. E o mérito dessa carta é exatamente, em determinados momentos, o leitor, a partir do texto, mergulhar naqueles anos. 1968 foi o ano que terminou com os sonhos. Foi um ano que foi doer em 1969 e nos seguintes. A ressaca do AI-V foi terrível. Prisões, torturas, polícia, medo, toda uma geração estava passando por isso. Betinho foi vítima dessa escalada de violência, terminando alquebrado no Chile e posteriormente no México. Mas um dia chegou a anistia e a grande pergunta: ´E agora, o que fazer com o Brasil?´ Era como se estivéssemos recebendo de volta um patrimônio que fora nosso e que agora nos era devolvido sem, no entanto, sabermos exatamente o que fazer. Para Betinho e Maria, a primeira reação, após o retorno, foi ´um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca´. Nesse clima de início de euforia surgiu o filho Henrique, do casal. Tudo ia muito bem até 1985. Foi então que se comprovou a devastação que era a Aids para homossexuais, drogados e hemofílicos. Como diz o autor, ´não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico. Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal´. Foi aí que teve vez, no entanto, o amor no tempo da Aids. Maria surpreendeu na dedicação que virou devoção. Betinho assumiu publicamente a sua situação. Superaram a questão do sexo, transformando-o em ternura, ´vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz´. Foi nesse momento que o casal chegou à conclusão de que ´viver é muito mais que fazer sexo´. Essa fase foi tão sublime para o casal que até ao retratá-la conscientemente, Betinho ainda brinca: ´irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado´. Ao final da carta se encontra o momento mais propício a uma reflexão: ´Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada´. A própria carta é uma porta aberta para que se reflita sobre toda uma geração marcada pelo sonho. Vem logo à nossa mente a famosa pergunta: onde eu estava e o que fazia nessa época. Em 1968 eu ingressava no Liceu do Ceará para fazer o 1º científico à noite. Ali permaneci também em 1969 e 1970, exatamente durante os momentos cruciantes desse choque do sonho com a realidade. A insatisfação era geral. Os professores estavam sem receber os seus salários há mais de cinco meses. Assistíamos e participávamos mais de passeatas que de aulas. Lembro-me bem do professor Gilberto Sidney Telmo e sua liderança entre os mestres e alunos do turno da noite do Liceu. Entre nós estudantes era notável a liderança de Custódio, levado pelo sonho até o Araguaia, e posteriormente lá enterrado com ele. Também o poder de comunicação do Dover nas reuniões que fazíamos. Naqueles dias formávamos um grupo de discussão em que, imberbes ainda, nos preocupávamos com a situação caótica em termos políticos, que vivia o nosso Brasil. Lá estavam Cardoso, Julinha, Anita e Pituba que nunca mais os vi. Mas também estava o Mapurunga, que depois enveredou com sucesso pele teatro e pela poesia, ganhando prêmios literários, dado o seu inestimável talento. Edilson foi para outro estado, Joaquim Washington também mudou e chegou a deputado federal pelo PT, Genuíno também mudou-se para São Paulo e entrou na política, antes passando escapado pelo Araguaia. Ficou no mesmo local, imponente e majestoso, o Liceu, testemunho e berço de nascimento de sonhos que marcaram nossas vidas e que a cada lembrança que se atiça, regurgita memorial dentro de nós. Essa carta do Betinho é prova disso. Basta a sua leitura para se verificar que, 40 anos depois, 1968 continua vivo e que o Brasil é uma construção que não acaba mais.

 

03/06/2008.

 

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