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A branca noite de Francisco Bezerra

Batista de Lima

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Nem a noite é branca, nem o mundo chegou ao fim. Se assim o fosse ou tivesse acontecido, ele não estaria contando histórias tão cheias de graça. A grande dúvida é saber como ele é melhor, se conversando ou escrevendo. Também leva uma grande vantagem sobre nós outros. Milita no jornalismo político, vivendo o cotidiano daquele caldeirão fervente que é a Assembleia Legislativa, com passagens pela Câmara Municipal. Fortaleza é seu ancoradouro, mas o espojadouro inicial lá pelo Cariús foi adubado pelos ensinamentos de cordialidade de seu José Bezerra e dona Terezinha, os pais. Seu nome, Francisco Bezerra.

Francisco Bezerra, ou Bezerrinha, para os próximos, conhece bem o mundo das brutanças dos cafundós e os meandros da política em que esperteza faz escola. De tanto contar o que tem visto e ouvido, resolveu colocar tudo em livro, com o devido cuidado de preservar certos nomes reais para permanecer nos bastidores do poder. O livro traz o pomposo título "A branca noite do fim do mundo" e se acusa de ser composto de contos, crônicas e causos. O que prende mais o leitor são seus causos captados em bares, bodegas, lupanares, praças, palanques, alpendres, sentinelas, queimas de caieiras, bagaceiras de engenho, pontas de rua, gabinetes de deputados, barbearias e sacristias.

O rapaz está sempre atento ao seu entorno, por isso, ouve e conta. A história do coronel Arcanjo Silveira, punindo o almofadinha que mexeu com a donzelice de sua filha preciosa, dá para rir e chorar ao mesmo tempo. Outro causo jocoso fica por conta de Herculano Pé de Valsa ao transformar uma caixa d'água em alcova. Como se vê, até os nomes dos personagens fazem rir, dada a inventiva de Bezerrinha. Os nomes vão surgindo e enfeitando as histórias: Veridiano é agrimensor, Arlindo é rábula, Marinaldo é contador, Zezão é capataz, Estêvão é o padre, Justiniano Cordeiro é o prefeito, Mariana é a eleitora aloprada, Dona Auxiliadora, a Dodora, é a rezadeira e Argemiro de Oliveira Júnior é o barbeiro.

Esses personagens fictícios vão embalando a imaginação do leitor, quando de repente o caminho da leitura se bifurca e aparece o cronista vasculhando cotidianos. Sua apologia ao Nordeste fecundo de talentos põe em evidência maior Caetano Veloso com sua ode "Sampa", Belchior pesando no Norte para cair no Sul, Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua ordenando o mundo jurídico nacional, Joaquim Nabuco dando exemplo de diplomacia, Farias Brito filosofando em português, Gilberto Freyre fazendo da sociologia uma ciência e Anísio Teixeira ensinando como se fazer escola pública no Brasil. Essa crônica de louvação aos nordestinos se destaca como culminante entre outras que pontificam no livro.

Não fica só por aí seu mergulho no universo da crônica. O autor canta louvores a Aírton Monte a que chama poeta maior, por ter unido a poesia à boemia, a diuturnidade psiquiátrica à noturnidade dos bares e das musas. Não esquece também de se reportar a Augusto Pontes, boêmio também da Fortaleza amada e autor das mais belas frases repentinas que extasiavam os circunstantes em libações madrugadouras. Das mesas do Ideal Clube, do Bar da Bia e do Flórida Bar, o escrevinhador salta para os gabinetes dos deputados e faz da Assembleia Legislativa um canteiro de onde brotam fatos tão inusitados em suas crônicas que até parecem contos da mais corajosa criatividade.

Essas narrativas de Bezerrinha possuem uma característica comum que dão o tom do seu estilo. São todas elas marcadas por humor ferino de quem, pela vidraça, observa o passar da banda. Esse humor principia já com o vocabulário, que vem permeado de termos usuais de pseudointelectuais desconhecedores do que dizem. Nessa fonte, nosso narrador vai se abeberar, abrindo as portas para seu humor demolidor. Daí aparecerem: "cachimônia", "facécia", "cenobita", "qualquerunzinho", "sabujo", "sevandija", "manquitola", "jactótum", "calibrina", "ajegado", "futriquento", "ajambrado", "umbrátil", "marruá", "azucrim" e "arribanas". Essas e outras palavras vão aparecendo como tempero ao humor das narrativas.

Francisco Bezerra é um contador de histórias. Mesmo como cronista prevalece a narrativa cotidiana. Entre suas crônicas, sobressaem aquelas que trazem um viés regional. O Nordeste é glorificado através da apresentação de seus valores maiores. Câmara Cascudo, Dom Hélder Câmara e Celso Furtado são homenageados como pilares da cultura nordestina e quiçá nacional. Também certo folclore oriundo dos bastidores políticos e do mundo do futebol bem como do coronelismo sertanejo surge fazendo contraponto com os causos nem sempre verdadeiros. Afinal alguns podem ser comprovados, outros perdem até a verossimilhança. É tanto que até o fantástico é cultivado em algumas de suas narrativas.

Ao final da leitura, constata-se que nessas 198 páginas do livro de Francisco Bezerra, há escritos para todos os gostos. Há humor, há apologias a nordestinos famosos, contos variados, causos jocosos e crônicas. É tanto que o momento mais pungente do livro é a crônica "Os 40 anos do martírio de Frei Tito". O relato presente nesse texto traz alguns fatos já conhecidos ao lado de outros desconhecidos do grande público, desse mártir conterrâneo. É um texto que mexe com a sensibilidade do leitor. O sofrimento por que passou o Frei Tito, nas masmorras da ditadura é uma chaga da nossa história que não cicatriza. Daí ser importante a leitura desse livro de Francisco Bezerra, pois multifacetado nos seus escritos, ele tempera sua escritura de uma forma tal que cativa os mais exigentes leitores.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/07/15.


 

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