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A aurora e sua plumagem

Batista de Lima



A aurora é uma gata angorá que se espreguiça antes de parir o sol. O horizonte não consegue manter essa camuflagem do quebrar da barra. Não há calmaria nos partos da natureza. Por isso que se ensanguenta o corpo da manhã nascente. Daí nasce a necessidade de entoarmos alvíssaras a cada nascer do sol. Para esse canto, não precisamos do cansaço dos ensaios, basta a colheita, entre os pássaros, da sabedoria que eles espalham. Eles põem penugens nas margens da manhã e não ligam para o perigo da tarde. Por tudo isso é que os dias escorrem pelos nossos dedos e nós tecemos a velha ilusão de que nascemos para sermos eternos.

Assim, pode-se dizer que escrever é construir pequenas eternidades. Pode ser também curar as feridas da saudade ou beijar os lábios acinzentados do luar. É preciso, no entanto, ter cuidado com as armadilhas da tarde, ela é vizinha da noite e passa o tempo limpando os carvões da escuridão. É muito justo, portanto, cantar ciranda à juventude. Ela alvorece sem precauções, viceja entre sarças, floresce nos escombros. Por isso que ao vermos um jovem tirando das tintas o sentido do mundo, nós nos empolgamos diante da constatação de que ainda há vida sob o sol. Constatamos que a máquina do mundo continua sendo revisada para mover o existir. Não precisamos pois nos desesperar, ainda há esperança.

Pedro Jorge Gomes nos dá esperança "Na plumagem das auroras". Ele consegue extrair "o canto seco das fumaças" e a "filosofia primitiva dos ventos". Com seus horizontes sobrados, ele arrancou as borboletas da infância e pintou de azul as entranhas da última esperança do mundo, a poesia.

Em plena aurora da vida, ele envereda pelo mundo do verso, cascavilhando, na velhice das palavras, o ninho em que as metáforas põem ovos de esperança. Esse seu vasto mundo de expansão dos sentimentos estende-se das vastidões siderais aos mais profundos recantos do eu lírico. A poesia, que produz, estabelece uma ponte entre a estrutura profunda do seu ser e o mundo exterior em que ela viceja exuberante.

"Na plumagem das auroras" é seu primeiro livro, mas vem carregado de tanto peso de vida, que dá a impressão de ser o último suspiro de quem passou a vida esculpindo relâmpagos. Ele confessa que suas "mãos se perderam no suor das dúvidas". Acontece que são "mãos ensanguentadas de verbos". Com elas, ele pinta a "aquarela das tardes" que vem ungida do "murmúrio das estrelas, do sereno dos calafrios", enquanto sentado fica sobre o "esqueleto de um sonho tardio". Pedro revira o monturo dos signos e com os cacos dos significados vai construindo uma melodia de quem sabe ordenhar dos úberes das palavras a sonoridade leitosa de que a poesia necessita.

Esse livro de Pedro Jorge publicado em 2016, pela Editora Premius, não traz prefácio, nem posfácio e em toda a correnteza poética que dele vaza, apenas uma frase de Aragón pontifica como epígrafe. "A poesia é a única prova concreta da existência do homem". Essa frase, desse mestre da poética, diz mais que qualquer prefácio que porventura viesse deslustrar essa obra. Basta captar, a partir daí, essas imagens que esse Pedro Jorge Gomes lança nas nossas retinas: "fumaça taciturna", "borboletas rupestres", "gaivotas solares", "palavras de sal", "auroras selvagens", "alvoradas cortantes", "aves incandescentes", "lábios das estações", "barricadas da alma", "vértebras dos sentidos", "abutres de pólvora" e "calabouços da alma".

Com relação a arte de escrever, esse poeta já se coloca com sua experiência criativa. "Escrever é uma luta solitária, é transitar sozinho num cosmo feito de palavras. É ver na morte, o princípio de todas as estradas. É segredar metáforas nos ouvidos do infinito". Nessa citação já se encontra um dos seus signos eletivos: "Infinito". Outros também já se cristalizam nos seus poemas: "Mar", "Tempo", "Horizonte", "Memória", "Lábios", "Sol", "Infância", "Abismo", "Sal", "esfinge", "caverna", "olhos", "corpo", "relógio", "alma", "insônia", "tarde" e "verbo". E por falar em verbo, é importante o contato do poeta com a plumagem da palavra. Ele acaricia esses signos como se eles fossem revestidos de pelúcia. Um carinho especial é desprendido no contato com cada palavra.

Mesmo que esse poeta mantenha um ritmo similar de poema para poema, há alguns casos em que seu polimento verbal se destaca mais perfeccionista na confecção do verso. É o caso, por exemplo, de "Evocação de Vênus", em que ele afirma: "Teus lábios fulminantes / levam-me ao deserto plural das incertezas". É o caso também de "Fatalismo metropolitano": "Numa só tarde, não tão azul quanto nos livros, / recolhi todos os meus pedaços / das vitrines dos sonhos de barro..." Aos poucos vou me tornando / pegadas de uns esquecimentos baldios." São imagens fortes que revelam uma angústia de um poeta tão jovem, mas já vitimado pelas dores do mundo.

O ponto culminante entre os poemas desse livro de Pedro Jorge está em "Percorro a noite". "Percorro a noite / pelos compartimentos / de uma casa sem memória / com a alma coberta de azulejos / à procura de uma palavra única / que traduza / o silêncio de minha sombra taciturna". Como se vê, o poeta manipula o código verbal e vai extraindo das palavras um potencial energético que só ele sabe onde se aninha.

É nesse dar a volta entre os contornos das palavras que seu mérito de criador vai se impondo. E não importa o que diga, mas a forma como se diz. É o caso, por exemplo, de seu poema surreal "Observo um lindo ramo", em que ele observa um lindo ramo nascendo nas costas de alguém e então o leitor fica a perguntar: - Será em mim que está nascendo esse ramo? Isso prova que em poesia tudo é possível.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 21/02/2017.


 

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