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A arte de pintar assombros

Batista de Lima


Tenho tentado pintar assombros. Falta, no entanto, a cor predileta dos espantos. Todas as que busquei no arco-íris se negaram a empalidecer nos sustos. Preciso encontrar a cor que instaure escombros. Se tenho desachado musas, é pela falta dessa cor que tanto cala. Foi por isso que, certa vez numa novena, me disseram que certas cores adormecidas se postam nos contornos da alvorada ou nos extertores do crepúsculo. Mesmo assim não tenho encontrado a cor que do suor grita por nascer. Quero uma cor que se debruce sobre o perfil fugidio da multidão.

Uma cor pode vir até molhada, sem que água ela conheça. Por isso não há como pintar um susto se com arte não desenharmos aquilo que apenas vemos e só por encanto sentimos, pois surgido, ele nos chega sem a dor de quem sentiu. Daí que, ao escrever de vermelho, estou espalhando meu sangue na folha que branca tremula. Mas quando essa escrita minha quer inscrever alguém pelo susto, não sei se o azul ou o roxo podem retratar melhor a dor que nos consome. Tenho, pois, ficado à margem dos transtornos para pescar o ângulo melhor onde respiram os sustos. Fico auscultando o som das rotinas para surpreender suas quebras. E a cor mais triste que vislumbro só consegue me trazer ternura. Se do terno ao eterno passo, são lâminas que do instante crescem.

Foi assim que contigo me reencontrei e era outra pessoa que a mim chegava. Não trazia a dor, mas os versos que da dor brotaram. Olhar, não te olho mais pois os olhos não mais me bastam, nem o sol me completa. Prefiro a saga que se esboça quando da luz me vingo. Prefiro colher as dúvidas amadurecidas destes plantios de incertezas. A vida me ensinou a entortar as retas e espichar as curvas. Também me ensinou que nada é definitivo aos olhos das perguntas. Nem a chave é definitiva se apenas olha o buraco da fechadura. Nem o osso foi feito apenas para ser rodeado. Nem a palavra é definitiva se apenas julga as possibilidades dos lábios. Nada me é se apenas estou. Até o rio me escorre pelo vale por ser eu apenas coadjuvante dessa saga. Leva o rio até meu pensamento, para avisar pela ribeira que sou um ser contido no sobrosso do dia e na pantomima da noite.

Na arte de pintar assombros reinam agulhas, faltam pincéis. As sombras invadem os compartimentos do texto e a pouca luz sobrevivente bruxuleia ao vento, as faces lívidas dos fantasmas. Se o carvão me chega às mãos, ergo os desenhos que a penumbra do passado acomodou no livro da memória. E se me assusto, é pela falta de cor para pintar teu rosto sujo de sopa quando o trovão estalou sem o prévio aviso dos relâmpagos. Esculpir a face do teu susto necessita captar a hora exata em que luz e sombra se chocam nas quebradas do tempo. Afinal, há momentos em que não sei se é suor ou é o mar que te lambe a pele por excesso de maresia.

Tenho pois ciúmes desse mar que preenche teus contornos, salga tuas lágrimas e dá cores a teu soluço. O mar que desconcerta certezas, desarruma passos e põe susto na paisagem que povoa as dunas. Entretanto ele não dá pincel para meu afã de pintar os sustos nos seus desvãos. Eu que quero aquele susto que dá um pulo por cima da ligeireza, que quebra tamborete e mesa e cadeira de balançar. Eu que quero aquele susto que treme na letra, se espalha pela folha, invade a sala, lateja no chão e faz a vida tremer no subsolo da pele. Mas que me venha também sua cor definida, pois susto sem cor, faniquito se torna.

Que me venha a cor do susto do oriente pois um mensageiro que de lá chegou, viu-me impresso numa arcada através de um braço que por lá esqueci. Isso prova que não sei pintar sem deixar partes minhas naquilo que ousei pintar. Só não consigo é imprimir nos sustos a cor que os sustos pedem. Quando te pintar resolvo, é uma fruteira que se estampa num verso redondo onde o susto não se enquadra se não for com cores. Por isso tenho uma estante repleta de uivos de muito longe. São uivos que se empilham em frases as mais diversas, gritando que querem cores, mas cores que não sei lhes dar.

Uma estante pode conter ensinamentos diversos da arte de pintar assombros. Difícil é para o pintor saber onde se escondem estes difíceis saberes que um dia alguém escondeu na estrutura mais que profunda dessas frases que o escritor nos deu. Pois dúvidas não temos mais, de que livros contendo uivos podem estourar os limites de uma estante fornida, se enramarem pela casa, apagarem fogo e fogão, depois de virarem panelas na confusão d´água quente. Isso tudo antes de se alojarem no porão ou no sótão que são dormitórios silentes de assombros e cabides. Esses assombros se penduram juntamente com morcegos empilhados nos cabides da memória.

Nesses cabides de outrora, meus ancestrais se penduram, com seus sustos, com seus uivos, pesando quilos até arrobas, sobre os ombros da memória. Há muitos anos meu avô, de braços com minha avó, ali estão pendurados, ele levando o chapéu com abas pandas de esperas, ela levando a cozinha com cheiros de carne fresca, café e tapioca e canjica de milho verde. Mesmo depois que ambos partiram naquela viagem sem volta, cada um acomodado, em andores de umburana, não é possível despendurá-los, dos cabides do porão, dos retratos das paredes, dos potes que suam lágrimas. Também possível não é, extrair as suas lições de como evitar que a vida seja mais que tentativa na arte de pintar assombros.


jbatista@unifor.br

19/04/11.

 

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