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A arte de esquecer alguém

Batista de Lima



Há várias formas de esquecer alguém. Uns dizem que uma fórmula é a da substituição, ou seja, colocar logo alguém no posto desocupado. Outros viajam, para criar a substituição da paisagem. Há ainda os que escrevem sua desventura e através da catarse desfazem-se do manto da solidão. Mais interessante é, através da escritura, imitar uma viagem, e, principalmente quando essa viagem é a Paris. Eu vou esquecer você em Paris, foi o que escreveu Carmélia Aragão. Além de ser título do seu livro de estréia, é também como nominou o décimo quinto e último conto de sua coletânea de narrativas curtas, editada pela Imprece em 2006. Isso, depois de ser premiada pelo III Edital de Incentivo às Artes, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará - SECULT. O livro me foi enviado pela autora ainda em 2007 e só agora consigo adentrar no seu interior por frechas que fui escavando na sua tessitura. Essa dificuldade vinha ocorrendo porque é difícil se imaginar que uma jovem com menos de 24 anos, como é seu caso, seja tão afetada pela solidão, a ponto de confeccionar contos de catarse, como gente adulta que sofre por estar sozinha. Carmélia é solitária. E não adianta ir a Paris, ou a Sobral, sua terra natal, ou permanecer em Fortaleza, onde se pós-gradua em literatura. A solidão que carrega não se desmancha no ar, porque ela está cravada em todos nós, vitimados por esse mal-estar que a civilização infiltrou em cada um. Foi, no entanto, inteligente, a nossa Carmélia, em procurar exatamente um dos melhores caminhos para encontrar socorro para suas dores da alma. Esse caminho é a literatura. É por isso que Pedro Salgueiro na orelha do livro conclui que ´a personagem principal desse livro é a mulher contemporânea, perdida em seu labirinto urbano, cuja saída é a busca angustiada dentro e fora de si.´ O contista Salgueiro, no seu comentário, vai mais além ao afirmar que alguns dos relatos do livro ´apresentam características que transitam do fantástico para o estranho; outros são fortemente marcados pela busca, pela fuga, pela expectativa de um encontro qualquer´. Outro intelectual que se debruçou sobre suas narrativas e extasiou-se com elas foi o poeta narrador e professor Dimas Carvalho, mitólogo da zona norte cearense, que viu no talento da nova contista, o gosto pela ironia, pela metalinguagem, pelas intertextualidades, pelo ´non-sense´, pelo ludismo e pela concisão. Entre essas intertextualidades, detectam-se suas leituras dos dois escritores acima citados, principalmente de Pedro Salgueiro, quando do seu perfeccionismo para alcançar a concisão, e esse costume desnecessário de salpicar o livro, de epígrafes. Pedro Salgueiro e Carmélia Aragão não precisam de epígrafes, eles estão acima delas, e não abaixo. À parte esses detalhes, logo que se consegue pegar carreira nas suas histórias, Carmélia nos previne: ´Minha grande obra: uma ponte submersa´. Essa ponte submersa, onde se instala a solidão, é a estrutura profunda, a mesma que é a alma do negócio do seu chaveiro personagem, o segredo. É esse segredo que desafia o leitor que passa quase dois anos observando o contorno dessa construção literária para se lançar prevenido nos meandros de suas armadilhas. Carmélia Aragão é uma construtora de armadilhas: arapucas, fojos, laços, anzóis, tarrafas e landuás metafóricos que o leitor feito bicho arisco tem que ir se livrando de cada uma e armando outras para quem vier depois. Ela se equilibra muito serelepe ´entre a dor e a literatura´ e realmente deixa o leitor ´pior que conto fantástico´. Ela vai salpicando a estrada da escrita, à nossa frente, com tiradas inusitadas do tipo: ´sempre fui poeta para ganhar mulheres, mas contista para perdê-las. A poesia só durava em mim uma paixão (...) É burro o amor que trai à noite. Amor que dura para sempre, uns 56 anos, trai ao meio dia. (...) sinto angústia pelas cartas que não chegam. Estou além desse quarto. Sou o princípio´.. Como se vê, há muitas preciosidades no livro dessa jovem escritora. Ela mesma escreve que centenas do que ela foi, estão nas gavetas, ou seja, há muito mais a nos presentear essa contista. Esse seu primeiro livro possui momentos de rara imaginação como é o caso do conto ´Meu reino por uma fivela´. É, no entanto, o conto ´A menina que tinha gatos dentro de si´ que se apresenta como culminância de sua criação. Afinal, os gatos, na sua obra, são mais fiéis que as pessoas, não só os felinos que rastejam pelos compartimentos do seu texto, mas principalmente os gatos metafóricos que transitam na solidão da autora. Esse livro é a escritura da solidão de Carmélia Aragão. É a presença constante de algo que está longe, mas que plantou suas raízes na memória da escritora. E para o leitor fica a pergunta: como é que uma garota tão jovem carrega dentro de si uma escritora tão madura?

 

17/03/2009.

 

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