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A arte de escutar

Batista de Lima


O escutador também ouviria outras classes não ouvidas, como os desvalidos, os abandonados, os desprezados, os solitários, os sem-ouvintes, os sem-palavras. Por isso que uma das disciplinas do curso de graduação em escutatória seria a linguagem dos surdos-mudos.

Quantas pessoas querem ser ouvidas e ninguém as escuta. A arte de bem escutar é tão instauradora de afeto quanto a arte de bem falar.

Falar qualquer um fala, escutar nem todo mundo escuta.

uero o direito de escutar. Já há gente demais falando para poucos escutarem. É evidente que preciso aprender a escutar. Nunca estudei para isso. Toda minha vida de estudante foi aprendendo a falar, foi treinando para me impor pelo grito e não pelo silêncio. Não conheço curso que prepare escutadores. Gostaria muito de fazer uma graduação em um curso para escutador. Um curso que me transformasse em um bacharel em escutatória. O escutador formado teria a função de escutar os que não são ouvidos.

Primeiramente o profissional escutador iria escutar as crianças, afinal ninguém escuta criança. Ninguém escuta a filosofia que se esvai da fala infantil. Depois haveria a escutatória dos idosos. O idoso gosta de contar histórias. São histórias carregadas de sabedoria e de experiência. Mas ninguém quer ouvir, alegando principalmente que não tem tempo para ficar ouvindo. O escutador profissional poderia fazer um atendimento domiciliar e passar os dois turnos ouvindo esses desouvidos.

O escutador também ouviria outras classes não ouvidas, como os desvalidos, os abandonados, os desprezados, os solitários, os sem-ouvintes, os sem-palavras. Por isso que uma das disciplinas do curso de graduação em escutatória seria a linguagem dos surdos-mudos. Assim seu mercado de trabalho estaria ampliado.

Quantas pessoas querem ser ouvidas e ninguém as escuta. A arte de bem escutar é tão instauradora de afeto quanto a arte de bem falar. Falar qualquer um fala, escutar nem todo mundo escuta.

Afinal, acontece muitas vezes que alguém nos fala, nós observamos, olho no olho, o falante, mas não estamos escutando. Daí que, falar é muito fácil, escutar é que são elas.

Outra constatação que deparei foi com o exercício da aprendizagem da fala. Aprende-se a falar, escutando. Todo aprendizado começa por um ato de escuta. Mas é um ato para o qual não nos preparamos. Por ter apenas agora notado essa necessidade de aprender a escutar, quero aprender essa difícil arte. Não quero apenas falar em ladainha para Deus ouvir. Quero também escutar sua voz e para isso tenho treinado bastante para escutar Deus, através da fala dos inocentes, da exuberância da natureza, de uma parede sem portas, de uma capoeira inóspita onde a voz divina repousa.

Isso me levou a constatar que não se escuta apenas pelos ouvidos. O coração também escuta e os olhos lhe acompanham. Os olhos que observam, instauram o olhar. Transformam o avistar em ver. Elevam o ver a ler. Ver bem é ler o outro. Ler o outro é nos encontrar nele. É nos instalar na estrutura profunda de quem nos circunda. Só assim meu silêncio se transforma em escuta. Só assim minha escuta vira fala.

Essa fala não é apenas interpessoal. Ela nos leva a nos entender com as coisas. As coisas falam pelos cotovelos e nós lhes damos as costas. Um sofá pode nos falar mais que um radialista. Uma fonte pode gritar mais que um ambulante. Daí que a voz das coisas se torna tão estridente que ultrapassa os limites da nossa percepção. Precisamos pois abrir as portas da nossa percepção para ouvir aquilo a que nossos ouvidos se negaram a ouvir.

Tudo isso nos leva à conclusão de que se o corpo fala, o corpo ouve. Toda a porosidade de nosso ser são ouvidos instalados. São radares que possuímos mas que nem sempre os aguçamos para as grandes audições. É pena que quando ouvimos bem, verificamos que nossos amigos são heróis em tudo. São vencedores permanentes. Não falham nunca, porque falam sempre. Apenas suas vitórias preenchem um repertório repetitivo.

Essas pessoas podem até ouvir nossa fala, mas não escutam. Não têm consciência do que ouvem. O ato de escutar tem como estágio anterior, o ato de ouvir. Esse ouvir só produz o escutador, se houver uma conscientização em torno do que o outro fala. Muitas vezes precisamos nos instalar no outro para escutarmos nos seus abismos uma voz que também é nossa. Se do outro apenas ouço a voz, me torno apenas parte de um sintagma. Tenho com ele apenas uma relação de superfície. Não passo de um rastreador que quer apenas o direito de rastrear. Entretanto, se do outro escuto a voz que vem de dentro me torno parte de um paradigma onde até a voz do meu povo pode ser prospectada.

É por isso que sempre imagino que na metáfora do falante e do escutador, em exercício de comunicação, existe uma porta que tanto nos serve para entrar como para sair. Se estou fora dessa construção sou apenas ouvinte e o escutar é apenas uma possibilidade. Entretanto, se estou dentro dessa construção posso escutar a fala de seus compartimentos e a porta que me separa da superfície é apenas uma possibilidade de transformar minha condição de escutador em mero ouvinte.

Quero pois aprender a escutar. Quero auscultar minha pulsação na respiração dos que me cercam. Preciso encontrar o que ainda não encontrei, usando a armadilha do silêncio observador. De tanto falar, sem escutar, tenho perdido a substância da fala. Nesse aprendizado que agora proponho, é preciso escutar as pessoas, escutar as coisas, ficar atento aos reclamos da natureza e finalmente me convencer de que tenho escutado muito pouco e falado até demais.


jbatista@unifor.br

06/04/10.

 

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