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A andorinha Andira

Batista de Lima


Outro aspecto interessante do enredo é o momento em que os afetos de Andira começam a se despertarem. Nesse momento há uma transfiguração provinda da humanização do pequeno pássaro. Esse fenômeno põe a criança leitora em um mundo simbólico tão rico que ela se sente ligada fraternalmente à andorinha.

Andira, uma andorinha especial, nasceu longe da mãe, fruto de um ovo abandonado. No entanto, tão logo nasceu, longe da família das andorinhas, foi adotada por uma família de morcegos. Seu mundo diurno foi antecipado pela vivência em um mundo noturno. Os costumes andorinhos do dia viraram práticas morcegas da noite. Seu aprendizado levou-a a conseguir, como os morcegos, dormir pendurada nas madeirames da pequena capela do lugar. No entanto, para conseguir esse desempenho, passou por longo treinamento com aqueles que a adotaram.

Assim se conduz, inicialmente, a andorinha dessa história para crianças, escrita por Rachel de Queiroz. Esse seu livro, da Caramelo Editora, traz ilustrações de Suppa, e vem oferecido ao seu sobrinho Luís Felipe de Macedo. O prefácio é de sua irmã Maria Luiza de Queiroz.

A temática dessa sua obra para crianças é a adoção. No entanto, é a adoção difícil de uma andorinha por um grupo de morcegos, o que para o mundo dos adultos é tarefa por demais rara, pois andorinhas e morcegos vivem mundos tão diferentes que dificilmente se encontram. Mas a imaginação da autora e o mundo simbólico da criança tornam essa aproximação perfeitamente viável.

A noturnidade e a diuturnidade são situações que não se cruzam. Na história, o milagre dessa convivência se torna possível por causa do abandono em que Andira se achava e do afeto que a família morcega lhe dedicou. No entanto, a complicação da história termina por ocorrer, pois, tempos depois, o bando de andorinhas retorna e Andira precisa optar pela vida diurna e nômade de seu povo, ou ficar no mundo noturno e sedentário dos morcegos.

Esse jogo entre a claridade diurna e dinâmica das nômades andorinhas contrasta com o sombrio noturno e sedentário dos vampiros que adotaram Andira. Essa dicotomia vem engordar as outras tantas que marcam a criatividade de Rachel de Queiroz. O leitor fica diante de dois mundos distintos, caracterizados por diferenças enormes, mas que, como Andira, também precisa tomar seu partido e optar por uma das circunstâncias. A história não é apenas de Andira, nem tão só de Rachel, mas também do leitor que se vê envolvido e tendo de fazer sua escolha, escolhendo um rumo para seguir, que nem sempre coincide com o que está no livro. A partir disso fica-se curioso para se saber realmente qual o destino da pequena ave. Antes, porém, a autora vai estabelecendo tiradas de metalinguagem, quando começa a enveredar por um código linguístico que varia entre os dois linguajares dos dois mundos de Andira. Esse momento é de aprendizagem da língua, o que dá um toque didático ao livro. O leitor iniciante fica sabendo o que significam "frugívoros", "insetívoros" e "hematófogos" porque o próprio texto tem sua explicação.

Outro aspecto interessante do enredo é o momento em que os afetos de Andira começam a se despertarem. Nesse momento há uma transfiguração provinda da humanização do pequeno pássaro. Esse fenômeno põe a criança leitora em um mundo simbólico tão rico que ela se sente ligada fraternalmente à andorinha, e vendo os morcegos sem a ojeriza que a maioria dos adultos lhes dedicam. O fato da criança começar a ter afeto aos personagens faz com que sua preocupação em preservar a fauna aumente no seu coração. A questão do livro infantil não é só divertir, mas principalmente formar. Essa é uma das preocupações da autora.

Essa ternura para com as andorinhas e os morcegos se contrapõe à reserva com que ela trata Chico Ruço, que tem uma cara ruim e maltrata todos os habitantes do telhado da igreja só porque eles sujam o piso que ele varre. Chico Ruço é pintado como o vilão da história. Ele varre a igreja, ruminando ódio às criaturas inocentes do telhado. Daí que ela vai descrevendo o sacristão: "Chico Ruço tinha um gênio, mas um gênio ruim mesmo. (...) Chico Ruço detestava aquela invasão das andorinhas, a algazarra, a sujeira que se espalhava em redor dos ninhos e invadia todo o chão."

Essa descrição de Chico Ruço, a do padre Adélio e do restante dos actantes da narrativa são todas produto de uma motivação em que a autora procura imbutir no significante, caracteres que são próprios do significado. É tanto que o nome Chico Ruço, assim como a personalidade que o caracteriza não possui a leveza que o nome Adélio, do padre, apresenta. O mesmo pode-se dizer do nome Andira com sua suavidade que também é da andorinha. Esse recurso se estende a Flor-da-Noite e Veludo que é o casal de morceguinhos que encontra Andira na capelinha da cidade de Morro Lindo.

Outra preocupação didática da autora é estar sempre ligando a narrativa a um aprendizado. Por isso que ela enfatiza, na relação de Andira com os seus amigos noturnos, o aprendizado porque passa a avezinha para aprender a língua morcega. Depois, não é fácil para a andorinha aprender a viver à noite, enxergando na escuridão e dormindo pendurada no madeirame. Esse aprendizado conduz atrás de si a instauração de um afeto que leva a um determinado momento em que a andorinha revela: "Eu posso ser uma andorinha por fora, mas sou uma morceguinha no meu coração."

Ao final da história, as andorinhas retornam, após o período ausente por causa do clima. Ocorre então o encontro surpreendente de Andira com sua biológica mãe andorinha, que se chama Estrelinha. Esse momento não é apenas de surpresa da mãe, em encontrar a filha que não sabia que possuía. É um momento também de difícil decisão para Andira.Desse momento difícil em que ela decide substituir o mundo morcego pelo mundo das andorinhas é que vem a última mensagem da autora para seus pequenos leitores. É que há um momento na vida em que precisamos tomar decisões difíceis e nesses momentos o bom senso precisa falar mais alto.


jbatista@unifor.br

23/03/10.

 

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