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A agonia da letra cursiva

Batista de Lima


O ato de manuscrever pressupõe dois tipos de letra, a letra de forma e a letra cursiva. A cursiva é a que corre maior risco de desuso, tendo em vista que o governo americano decretou a não obrigatoriedade de seu ensino em escolas de vinte e sete de seus estados. Ora, tudo que americano faz, é imitado pelos outros países, principalmente os subdesenvolvidos e aqueles em crescimento. É lógico que o Brasil terminará por entrar nessa onda. Acontece que a letra cursiva é mais humana, mais representativa da pessoa do que qualquer outra similar, principalmente a impressa. A letra cursiva é um retrato de quem escreve.

O que a letra cursiva mais simboliza é o relacionamento sintático. Sintaxe é a sociologia da linguagem. É através dela que os elementos se relacionam. Quando uma letra dá as mãos a outra letra, instaura-se a sílaba. Se elas se tocam através de uma ligação cursiva mais simbólica é essa relação. Da mesma forma acontece quando as sílabas se amarram para formarem as palavras e por outro lado as palavras se unem para formar as frases, e as frases se unem em parágrafos e estes se aglomeram em textos. Essas relações sintagmáticas possuem um perfil sociológico.

Outro fator fundamental na cursividade é a análise grafológica. A extinção da letra cursiva é a morte da grafologia. A personalidade do escrevente transparece na letra cursiva. Através dela é possível traçar um perfil psicológico de quem escreveu. Isso fica difícil na letra de forma e mais ainda na letra impressa. Uma variação comportamental pode ser detectada ao longo de uma redação de uma página manuscrita. Geralmente os homens trabalham menos as grafias. As mulheres capricham mais na letra. Uma letra muito arredondada é mais feminina do que aquela de traços retilíneos. Pela letra cursiva é até possível, então, saber se foi um aluno ou aluna que escreveu. Também é possível estabelecer parâmetros terapêuticos a partir das variações gráficas da escrita. Isso sem contar que era meritório em outros tempos o fato de se possuir uma boa letra. A caligrafia era motivo até de respeitabilidade. Letra muito feia denunciava alguém desleixado e até semianalfabeto. Toda essa estratificação estará resolvida com a abolição da letra cursiva. Acontece que a grande dúvida é saber se essas mudanças modernizantes vão contribuir para melhor aprendizagem.

A palavra "cursiva" é derivada de "curso" e cognata de "percurso" e "discurso". Nela, a significação maior da palavra, que está alojada na raiz, circula pelo resto do vocábulo, alimentando a seiva das desinências com seu potencial significativo. Tudo parece circular mais fácil pelo fato de estarem ligadas fisicamente. É bem verdade que a modernidade não está muito preocupada com isso, principalmente nós que a construímos sobre os escombros da tradição. Não sabemos preservar os alicerces do que foi construído ao longo dos séculos, desde os copistas mais antigos, passando pelos escribas, pelos cronistas a quem devemos os registros mais fidedignos dos fatos históricos.

Acontece que quando manuscrevemos um texto qualquer, de caneta ou lápis, até estabelecemos uma intimidade maior com a palavra escrita. É como se esvaíssemos verbalmente pelos dedos. Até parece que as palavras brotam mais felizes por cursarem um rio que nasce no coração e desemboca na folha branca sem nenhuma interrupção. Esse fenômeno dificilmente acontece quando digitamos. A letra cursiva que escrevemos é como se nosso sangue, em forma de tinta azul ou vermelha esteja caindo no papel.

Com relação aos educadores e suas opiniões sobre o assunto, o que se verifica é uma divisão de posicionamento. Há uns que consideram a letra cursiva mais simbólica para a criança na fase de socialização. Esses consideram a letra de forma como um treinamento antecipado para um individualismo. Entretanto para os construtivistas a questão pode passar por uma opção pessoal do iniciante na escrita. Ele é que deve construir sua própria escrita. Ele é que deve fazer sua opção pela letra onde melhor se encontrar. Há ainda os que defendem a letra de forma como mais comunicativa e mais fácil para a recepção do outro.

A partir dessas considerações, pode-se até constatar que sendo a letra cursiva mais representativa do indivíduo, chegando até a ser uma forma de cada um se impor no grupo social, vem ela se tornar uma fala. Essa fala é uma construção pessoal. Daí ser um ponto de tensão entre o indivíduo e a sociedade. Ora, se tiramos do indivíduo mais essa possibilidade de ter na sua grafia uma forma de impor-se, de promover-se, de se registrar melhor como ser no mundo, contribuímos para sua alienação.

Assim sendo, acredito que não seja pertinente cantar aleluias aos estertores da letra cursiva. É perfeitamente viável a sua convivência com sua irmã mais fria, mais racional letra de forma. Além disso há o fato, mais uma vez, de ferirmos o mérito, a hierarquia da sociedade das letras, onde as minúsculas vivem torcendo e lutando para se tornarem maiúsculas. A questão entre maiúsculas e minúsculas não é resultante de tamanho mais sim de formato, de apresentação. As letras imitam as pessoas, umas cursam, outras discursam.


jbatista@unifor.br

04/10/11.

 

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